Modos de ser e representar n’A Resposta da Igreja: uma abordagem de Análise Crítica do Discurso com base nos aspectos linguístico-avaliativos
Alex Luis dos Santos
E-mail: [email protected]
Resumo: Este trabalho objetiva, com base nas formas linguístico-discursivas indicadoras do posicionamento dos escritores, analisar as representações, identificações e construções ideológicas construídas em três textos, em que a Igreja Católica avalia as acusações do envolvimento clerical em casos de pedofilia. Metodologicamente, realizam-se as etapas sugeridas por Fairclough (2003) que consiste na identificação dos temas e dos pontos de vistas sobre os temas linguisticamente construídos. Entre outros resultados, observa-se a construção de uma representação sacerdotal que credita aos clérigos católicos um prestígio e poder singular entre as classes socialmente constituídas.
Palavras chave: Posicionamento, Representações, Igreja, Pedofilia.
Abstract: This paper aims, based on linguistic-discursive forms which indicate thepositioning of the writers, to analyze the representations, identifications and ideological constructions built on three texts, in which the Catholic Church evaluates the accusations of clerical involvement in cases of pedophilia. Methodologically, it is followed the stages suggested by Fairclough (2003) which consists in the identificationof topic and identification of viewpoints about topics linguistically constructed. Among other results, it is observed the construction of a representation of priests which creditsthe Catholic clergy a singular prestige and power between classes socially constituted.
Keywords: Positioning, Representations, Church, Pedophilia.
1. Introdução
Não se pode mais, talvez jamais fosse possível, ignorar a visibilidade publica da religião e suas práticas no contexto social. Quer no plano da cultura enquanto comportamento, quer no da esfera sócio-política por meio do reconhecimento e enfrentamento atuais de problemas ambientais e de legislações específicas, os atores religiosos movimentam-se e trazem ao domínio público suas avaliações, seus discursos, suas perspectivas.
De vários lados, torna-se dificultoso, conforme acredita Burity (2008, p.84), reiterar diagnósticos tradicionais das ciências sociais para os quais a “secularização moderna, a sofisticação tecnológica, o individualismo e a cultura de massas levariam a um progressivo declínio das práticas religiosas e da presença pública das religiões”.
A despeito de uma visibilidade que acarrete à promoção dos preceitos e práticas religiosos, o que hodiernas acontece no contexto social religioso católico é a divulgação por diferentes canais de imprensa do envolvimento de clérigos em casos de abusos sexuais contra menores.
É inconteste, conforme salienta Carrasquila (2010, p.8), que a existência de delações acerca de abusos e escândalos de tipo ético e econômico principalmente sempre houve, todavia sem maior repercussão social. A novidade de hoje é não só o caráter primariamente sexual das denúncias, mas especialmente o modo como são facilmente manifestas. A divulgação instantânea é uma característica dos dias atuais.
Com vistas a esse todo desfavorável, em setembro de 2010, a Santa Sé – personificação jurídica do Estado do Vaticano – de que se deduz não somente o Romano Pontífice, mas também a Secretaria de Estado, o Conselho para os negócios públicos, e os demais Organismos da Cúria Romana, lança A Resposta da Igreja.
Essa resposta – objeto assente deste trabalho – torna conhecido, entre outras coisas, a avaliação das novas normas sobre os delitos mais graves, a instituição de procedimentos possivelmente capazes de dar assistência às vítimas de abusos, e o modo como a série de acusações divulgadas pela imprensa foi interpretada.
Objetiva-se a partir basilarmente dos pressupostos teóricos da Análise Crítica do Discurso textualmente orientada, via Fairclough (2001, 2003), e das Representações Sociais, segundo Moscovici (2009), Hall (1997), e Celani e Magalhães (2002), analisar a articulação linguística e implicação ideológica de representações e identificações no conjunto de textos que definem A Resposta da Igreja, enquanto um evento social especificamente significativo.
Para isso, lança-se mão da proposta metodológica de Fariclough (2003) que sugere, no empreendimento analítico dos modos de representar e ser, a identificação dos temas ou áreas da vida social em pauta nos textos, e a identificação dos pontos de vistas que agem sobre esses temas linguisticamente construídos.
Os textos que se encontram no site da Santa Sé são: Carta circular para ajudar as conferências episcopais na preparação de linhas diretrizes no tratamento dos casos de abuso sexual contra menores por parte de clérigos, em que assina o prefeito do Vaticano – Willian Cardinale Levada -, O significado da publicação das novas “Normas sobre os delitos mais graves”, cuja autoria é do diretor da sala de imprensa da Santa Sé – Federico Lombardi -, e Um contributo vital para a promoção de ambientes seguros em prol da juventude, do atual pontífice emérito Joseph Ratzinger – o papa Bento XVI.
2. Desenvolvimento argumentativo: reconhecendo e analisando as representações e identificações arquitetadas textualmente
As escolhas e disposição das formas ou expressões que asseguram um posicionamento no discurso efetivam, a partir da abordagem construcionista do significado na língua1, representações de como as coisas são e tem sido, bem como imaginários, entendidos como representações de como as coisas seriam, deveriam ou poderiam ser. Essa asserção assenta-se na própria lógica do funcionamento do significado avaliativo num discurso, qual seja, tencionar, de um dado prisma, a valia ou qualidade mais prazível que se não parece ser, pretende-se fazer.
Isso quer dizer que o discurso, isto é, uma forma particular de representar parte do mundo (Fairclough, 2003, p. 26), considerando os aspectos textualmente observáveis e inferíveis da avaliação textual, depende não somente da qualidade material do signo avaliativo, ou seja, das letras, sons, palavras que formalizam essa forma particular de representação, mas, sobretudo, da função simbólica que esse signo adquire dentro de um evento social como é A Resposta da Igreja.
A função simbólica de uma expressão capaz de aduzir um posicionamento no texto está em sua capacidade de servir a uma prática e a uma situação em que a avaliação de objetos, sentimentos e comportamentos porta-se como uma maneira eficiente de demonstrar uma possibilidade ou um ponto de vista sobre algum tópico dessa situação ou área da vida social.
Quais sejam essas possibilidades, tomando-as como representações de fatos trazidas em interações pelas formas avaliativas que funcionam de certa maneira e em favor de grupos específicos, elas não são inéditas e privativas, ainda que possam se apresentar sob a feição de originais e imprevisíveis.
Isso quer dizer que as pessoas que coletam fatos sobre a sociedade e os interpretam, avaliando-os, “não começam do zero a cada relato que fazem. Usam formas, métodos e ideias que algum grupo social, grande ou pequeno, já tem à sua disposição como maneira de fazer esse trabalho” (Becker, 2009, p.27).
Fairclough (2003, p.129) acredita que “nós podemos pensar o discurso como (a) representando alguma parte particular do mundo, e (b) representando-a de uma perspectiva particular”. Em razão disso, ele sugere a fim de se atentar para os modos de representar fatos em discursos dois movimentos ou, maneiras de se atuar analiticamente diante disso.
O primeiro deles é “identificar as partes principais do mundo (incluindo áreas da vida social) que são representadas – os temas principais” (Fairclough, 2003, p. 129). Cada tema identificado, em princípio, está aberto a uma variedade de diferentes posições, diferentes representações, e diferentes discursos.
O outro movimento, contíguo ao primeiro, diz respeito a “identificar a perspectiva ou ângulo particular ou ponto de vista pelos quais eles [os temas] são representados” (Fairclough, 2003, p.129). A possibilidade desses ângulos particulares, nem sempre facilmente perceptíveis, somente afirma as diferentes facetas que um tema ou área da vida social pode adquirir no discurso.
Ao ponderar esses dois movimentos, é provável a observação não apenas de panoramas do mundo físico, normas, valores e símbolos do mundo social, como relativos aos modos de representar, mas também de expectativas que as pessoas lançam sobre si mesmas como atores de um evento social numa conjuntura específica (Celani & Magalhães, 2002, p. 321).
Essas expectativas consentem, associado aos modos de representar, o exame dos modos de ser. Segundo Fairclough (2003, p. 157-164), a identificação dos sujeitos na linguagem, ou os modos de ser, é tanto uma questão individual como coletiva, no sentido de pertencimento a grupos sociais ou comunidades, e o foco nos estilos, enquanto elemento importante dessa identificação, envolve o interesse de uma série de aspectos linguísticos, dentro os quais está a avaliação e com ela age para representar.
Quer individual, quer coletiva, a identificação dos sujeitos na linguagem dispõe que as pessoas “podem afirmar suas particularidades e individualidades e estabelecer identidades distintas para si mesmas em face das práticas de linguagem que crescentemente são homogeneizadas e inevitáveis” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p.13).
Sem embargo, Castells (2006, p.6) julga que a identificação dos sujeitos na linguagem é conferida por meio de um processo de individualização. Isso quer dizer e reconhecer que as identidades podem ser “também originadas de instituições dominantes, [todavia] ativadas somente quando e se atores sociais as internalizarem, e construírem seus significados em volta dessa internalização” (Castells, 2006, p.7). Os significados, na perspectiva do autor, são demonstrações simbólicas de um propósito de ação de um ator social.
Assim, assumindo a conjugação dos modos de representar e ser em formas particulares de seleção, contextualização, tematização e avaliação dos fatos, o excerto abaixo é instrutivo à investigação que se faz:
Essa interpretação sobre o ponto de vista identificado possui sustentáculos materiais, quer dizer, formas linguístico-avaliativas, bastante sugestivos. O primeiro deles, reportado no próprio excerto, diz respeito ao uso do epíteto “boa” que qualifica e, ao mesmo tempo, define um estado natural de conduta cotidiana irrepreensível e reconhecida do clérigo anterior a qualquer acusação.
O segundo, demonstrado com o excerto (II), tem a ver com a orientação da expressão modal e avaliativa “eventuais” para um contínuo impreciso de frequência que coloca em questão a factual existência do ato pedofóbico e, consequentemente, a participação clerical nas infrações delatadas.
Essa pretensão não parece, segundo Jenkins (1996, p.168), corresponder às visões sobre o prestígio sacerdotal surgidas mais peremptoriamente a partir da década de noventa do século vinte e um. Para o pesquisador, esse prestígio tem se desgastado ao longo dos anos:
O selvagem anti-catolicismo do século XIX e início do século XX não impediu a Igreja [Católica] de manter o alto prestígio popular ou, de fato, de recrutar um grande número de padres em perspectiva. Até nesse momento, porém, a situação obscura da Igreja era apenas resultante de uma competição [com os protestantes], uma vez que não era compartilhada pelos próprios católicos. O ambiente [ou conjuntura] da década de 1990 é diferente em muitos aspectos, e o número de vocações sacerdotais atingiu uma baixa histórica, mesmo antes da crise atual [referente aos casos de pedofilia]. Que a situação vai piorar num curto prazo parece inevitável. O prestígio sacerdotal foi severamente danificado, e até mesmo em comunidades católicas tradicionalmente leais, há evidências de intensa oposição das famílias em permitir a entrada de meninos no seminário e até mesmo de se tornarem coroinhas (Jenkins, 1996, p.168).
Paralelo e simultaneamente, o excerto (I) oferece, com implicações ideológicas mais efetivas, outra leitura a partir dos movimentos sugeridos por Fairclough (2003), sem prejuízo da que serve e identifica o discurso jurídico, já que demonstra notáveis similaridades. Nessa alternativa, o discurso bíblico é evocado para definir o tema justiça divina, o ponto de vista cristão e um modo de ser juiz, porquanto delibera, pelo que conta o uso da metáfora ideacional2 “acusação” no conjunto de conhecimentos judaico-cristãos, a inocência do réu.
O uso da metáfora ideacional “acusação” no conjunto de conhecimentos judaico-cristãos demonstra um significado pouco patente. Esse significado considera diacronicamente a definição etimológica do latim, para a qual estão previstas acepções que sinalizam a impropriedade do acusador em acusar, ao pressupô-lo falacioso e passional.
A tais pressuposições, relaciona-se, via cotejamento etimológico, diaballein – atacar falsamente -, diabolus – caluniador, espírito da mentira -, no grego diabolos – acusar com paixão. Esse cotejamento, de que faz parte fundamentalmente accusationis ediabolus e que redimensiona em termos semânticos o primeiro em função do segundo, aciona abstrações de experiências religiosamente validadas e negativamente ajuizadas, uma vez que possibilita, de maneira indireta e intertextual, o julgamento sobre aquele que acusa – o acusador.
O julgamento relacionado ao caráter está calcado em convicções éticas que perfilam a idoneidade das pessoas avaliadas. Sendo assim, ao antever, pela metáfora ideacional “acusação” a suspeita ou conjectura desfavorável acerca da probidade ou imparcialidade dos que sinalizam o envolvimento de clérigos em casos de pedofilia, o que se afirma é a ilegitimidade moral dos delatores, sob suas diversas instâncias, ou seja, paroquianos, debatedores, canais de imprensa.
Esse significado possui implicações ideológicas mais efetivas porque a ação da ideologia, sobre que se entende “construções de práticas a partir de perspectivas particulares que suprimem contradições, antagonismos, dilemas de acordo com os interesses e projetos de dominação” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p.26), é menos visível, já que só se reconhece por um token de atitude3.
A invisibilidade ou menos visibilidade da ação ideológica é alcançada quando as ideologias são trazidas para o discurso não como elementos explícitos do texto, “mas como pressupostos de fundo que, por um lado, levam o produtor do texto a textualizar o mundo de uma forma particular, e, por outro lado, levam o intérprete a interpretar o texto de uma forma particular” (Fairclough, 1989, p.85).
De acordo com Fairclough (1989, p. 85), se alguém se torna consciente de que um determinado aspecto do senso comum, ou não tão comum assim, como por exemplo, a alusão ao mal relacionada ao acusador, sustenta desigualdades de poder em detrimento de si próprio, “aquele aspecto deixa de ser senso comum e pode perder a potencialidade de sustentar desigualdades de poder, isto é, de funcionar ideologicamente”.
A compreensão sobre o funcionamento ideológico – que se define com a metáfora ideacional “acusação”, sob o ponto de vista cristão, o processo de incriminação de clérigos – exige que se considere mais profundamente o modo de operacionalização da ideologia e a estratégia de construção simbólica típica para o uso.
O modus operandi da ideologia nesses casos pode ser identificado comodissimulação. O que se realiza na dissimulação é o ato de ocultar, negar ou obscurecer um acontecimento ou uma relação de dominação representando-os de uma maneira que “desvia nossa atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes” (Thompson, 1995, p.83).
Assim, o julgamento que coloca em suspeição, por meio da metáfora ideacional “acusação”, a probidade ou imparcialidade dos que sinalizam o envolvimento clerical em casos de pedofilia – a imprensa mais notavelmente – desvia o foco da possível infração cometida pelo clérigo para o caráter e comportamento dos acusadores, especialmente dos jornalistas que promovem os debates sobre o assunto.
Esse caráter e comportamento, avaliado depreciativamente e recuperado na origem etimológica do termo contribui para que a estratégia de construção simbólica seja reconhecida como expurgo do outro. Essa estratégia envolve a construção de um inimigo, assim como o diabo é representado no conjunto de conhecimentos judaico-cristãos, “que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos [pressupõe-se os fiéis católicos] são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo” (Thompson, 1995, p.87).
A resistência coletiva evocada nessa estratégia de construção simbólica apresenta uma “elaboração demonológica de uma cristandade [o diabo, belzebu, satanás] que inclui crenças populares com certa conotação negativa” (Lira, 2011, p.90). Quais sejam essas crenças, no conhecimento judaico-cristão , elas ativam uma entidade antagonista cuja natureza é a mentira e uma representação estritamente maléfica (Lira, 2011, p.91).
Na dicotomia bem e mal, em que o mal representa especialmente a imprensa, cuja qualidade de falaz é dada a conhecer, a atuação episcopal, enquanto índice da Igreja, significa, de acordo com o excerto (III), assistir as vítimas e os seus familiares tanto no âmbito espiritual quanto no psicológico:
Esse modo de ser fiscalizador age sobre o tema assistência social segundo o ponto de vista da medicina terapêutica, já que preceitua, dentro da competência determinada ao bispo ou a um delegado seu, certos procedimentos ou conselhos, como por exemplo, ouvir e oralmente intervir, mais próprios desse ponto de vista.
Esse ponto de vista identificado contempla o processo formativo sacerdotal que, segundo Benelli (2008, p.204), contém “orientações teológicas relativas ao presbiterato e seus desdobramentos pedagógicos, psicológicos e espirituais” (grifo nosso). Para o autor, o possível estranhamento com o aspecto psicológico na formação sacerdotal parece consistir no “desconhecimento da ação, das práticas institucionais cotidianas realizadas pelos diversos atores implicados na produção dessa realidade social específica” (Benelli, 2008, p.210).
Assim, a produção dessa realidade social específica – a que se associam os programas de engajamento e assistência social apoiados na formação e atuação sacerdotal – funciona n’A Resposta da Igreja, com base no excerto acima, de maneira a reforçar o processo de reabilitação das crianças e jovens prejudicados – representados como vítimas mentalmente desorganizadas.
Tal processo está equacionado para a resolução do que se considera e representa como uma crise. O excerto (IV) é próprio para instruir essa possibilidade interpretativa, uma vez que constrói uma postura pesarosa diante do tema “momento atual”, sobre o qual a Igreja se propõe a dizer:
Desse ponto de vista, a crise é a representação do desiquilíbrio da “forma de controle da produção reificada que adquiriu [a partir de um viés capitalista] o poder de aglutinar os indivíduos num padrão de produção hierárquico estrutural e funcional possuindo uma lógica de reprodução” (Maranhão, 2009, p.629).
Considerando o encargo e compelimento de por, ou apresentar-se no lugar de, de concordar ou criar uma nova realidade de significados, haja vista por percurso semasiológico 4 do signo que define o nome do evento social “resposta” – do latimrespondere – a necessidade de dizer pela coisa, acontecimento ou algo [res = coisa, acontecimento; spondere = dizer em nome de] que está ou tem sido posto, a crise, enquanto representação a partir do ponto de vista econômico, produz basicamente dois efeitos: (1) a admissão do, e responsabilidade pelo desiquilíbrio da forma de controle sobre a ação clerical, enquanto situação posta ou inevitada, o que contraria a inocência afirmada e advogada a partir da representação deflagrada com o uso da metáfora ideacional “acusação”; (2) o caráter provisório, isto é, finito, desse desiquilíbrio ou descontrole.
A interinidade do descontrole pode ser vista, atentando para a impossibilidade de se assegurar com preciso grau de exatidão a finitude do que se representa discursivamente como crise, como um estratégia típica de construção simbólica caracterizadamente eufêmica, ou seja, uma eufemização.
Para Thompson (1995, p.84), a eufemização, enquanto um estratagema, isto é, uma forma de dissimulação, denota que “ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoração positiva”. Entretanto o que se realiza n’A Resposta da Igreja, segundo o excerto (XII), não é tanto o atiçamento de uma valoração positiva do momento em que a Igreja vivencia, mas sim o ato de minorar o aspecto negativo desse momento, creditando-o determinado no tempo. É nesse sentido que se dá a eufemização.
3. Considerações finais
Assim como o conhecimento social é inevitavelmente parcial, a análise discursiva textualmente orientada é inevitavelmente seletiva, no sentido de que se escolheu responder determinadas questões sobre um evento social e textos nele envolvidos e com isso abriu-se mão de outras questões possíveis. A escolha das questões a serem respondidas denuncia necessariamente as motivações particulares da análise, visto que delas derivam.
A partir dessas motivações, parece razoável, pelo menos no que se restringe ao evento social A Resposta da Igreja, a lógica social, defendida por Squizzato (2011, p.10), segundo a qual os sacerdotes, enquanto representação de si, têm-se creditado, com a tentativa de controle do que se acredita sobre os fatos sociais, inclusive sobre si mesmos, uma classe à parte, dominante e prestigiada, quer dizer, uma casta. Essa presunção tem sido rechaçada em virtude das recentes tensões com diversos órgãos de imprensa e de acusações de natureza diversas, inclusive sexual.
A respeito da relação Igreja e imprensa, pode se dizer, com base no evento social analisado que a representação da última é construída como que um mal social que deve ser combatido. Sendo assim, ao antever, pela metáfora ideacional “acusação” a suspeita ou conjectura desfavorável acerca da probidade ou imparcialidade dos que sinalizam o envolvimento de clérigos em casos de pedofilia, o que se afirma é a ilegitimidade moral dos acusadores.
Do ponto de vista da construção ideológica, a representação da imprensa como um mal cria uma resistência por meio da estratégia típica do expurgo do outro. A resistência coletiva evocada nessa estratégia de construção simbólica apresenta uma “elaboração demonológica de uma cristandade que inclui crenças populares com certa conotação negativa” (Lira, 2011, p.90). Essas crenças ativam uma entidade antagonista cuja natureza é a mentira e uma representação estritamente maléfica (Lira, 2011, p.91). Nesse sentido, a Igreja é representada como o bem que resiste ao mal, e que, nesse momento de instabilidade conflitual, todavia terminável, assiste às vitimas de abusos com o apoio psicológico necessário.
Finalmente, ao tratar esse momento de instabilidade como um momento de “crise” a Igreja, entretanto, admite a responsabilidade pelo desiquilíbrio da forma de controle sobre a ação clerical, enquanto situação posta ou inevitada, o que parece contrariar a inocência afirmada e advogada a partir da representação deflagrada com o uso da metáfora ideacional “acusação”.
4. Referências bibliográficas:
Bazerman, C. (2004). Speech Acts, Genres, and Activity Systems: how texts organize activity and people. In: C. Bazerman & P. Prior (eds). What writing does and how it does it: an introduction to analyzing texts and textual practices(pp.309-341) London: Erlbaum.
Becker, H. (2009). Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Zahar.
Benelli, S. (2008). Estudo psicossocial de um seminário teológico: a formação do clero católico em análise. Estudos de Psicologia, 203-211. Retirado da UNESP database.
Burity, J. (2008). Religião, política e cultura. Tempo Social – revista de Sociologia da USP. 83-113. doi: 18094554.
Carrasquila, F. (2010). Los escândalos de pedofilia en la Iglesia: una lectura desde la fe. Bogotá: San Pablo.
Castells, M. (2006). The power of identity. Malden: Blackwell.
Celani, M. & Magalhães, M. (2002). Representações de professores de inglês como língua estrangeira sobre suas identidades profissionais: uma proposta de reconstrução. In: L. Moita Lopes & L. Bastos (eds), Identidades: recortes muti e interdisciplinares (pp.319-338). Campinas: Mercado de Letras.
Chouliaraki, L & Fairclough, N. (1999). Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press.
Fairclough, N. (1989). Language and power. New York: Longman.
Fairclough, N. (2001). Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB.
Fairclough, N. (2003). Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge.
Hall, S. (1997). Representation: cultural representation and signifying practices. London: Sage Publications.
Jenkins, P. (1996). Pedophiles and priests: anatomy of a contemporary crisis.New York: Oxford University Press.
Lira, D. (2011). A demonologia no ambiente do Novo Testamento: uma análise ideológico-conceptual da palavra daimon no Corpus Hermeticum.Protestantismo em Revista, 87-98. doi: 16786408.
Maranhão, C. (2009). Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, Resenha. A crise estrutural do capital, 213-216. doi: 1981061X.
Martin, J. & White, P. (2005). The language of evaluation: appraisal in English. London: Palgrave Macmillan.
Squizzato, A. (2011). Il fenomeno della pedofilia all’interno della chiesa cattolica. In: L. Baccaro (ed). Rivista di psicodinâmica criminale, 3-38. Retirado da Padova Onlus database.
Thompson, J. (1995). Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes.
1 Segundo Hall (1997, p.18-19) são três as abordagens que tratam do funcionamento da representação de significados a partir da linguagem: reflexiva, intencional e construcionista ou construtivista. Na primeira, pensa-se que o significado esteja no objeto, no evento ou pessoa do mundo real, e que a linguagem funcione como um espelho a refletir o verdadeiro significado, por este já existir no mundo. A segunda sustenta que é o falante que impõe ao mundo através da linguagem seu significado único. Por fim, a abordagem construcionista, adotada neste trabalho, reconhece a característica social da linguagem. Nesse sentido, as coisas não significam por si próprias; são, sobretudo, construídas por meio de sistemas de representação, isto é, conceitos e signos.
2 A metáfora ideacional, do ponto de vista da Linguística Sistêmico-Funcional significa uma variação na expressão mais típica de um dado significado, ou seja, ao invés de “X abusa de Y” ou “X responde a Y” prefere-se o uso de formas mais abstratas como “abusos” e “resposta” respectivamente. As formas mais abstratas são constituídas, nesses casos, pela indeterminação dos participantes sob os quais se legitimam osprocessos “abusar” e “responder”, uma vez que por estes estão previstos.
3 Facilita aduzir que um token de atitude, do ponto de vista da Linguística Sistêmico-Funcional, é um mecanismo textual capaz de recuperar, por meio da atividade discursiva de inserção contextual, quer dizer, de uma inferência, um posicionamento pouco patente (Martin & White, 2005, p.61).
4 O percurso semasiológico tenta compreender um discurso pela identificação e interpretação dos diferentes elementos discursivos que o compõem, num movimento que parte do signo para o conceito.
Alex Luis dos Santos
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Resumo: Este trabalho objetiva, com base nas formas linguístico-discursivas indicadoras do posicionamento dos escritores, analisar as representações, identificações e construções ideológicas construídas em três textos, em que a Igreja Católica avalia as acusações do envolvimento clerical em casos de pedofilia. Metodologicamente, realizam-se as etapas sugeridas por Fairclough (2003) que consiste na identificação dos temas e dos pontos de vistas sobre os temas linguisticamente construídos. Entre outros resultados, observa-se a construção de uma representação sacerdotal que credita aos clérigos católicos um prestígio e poder singular entre as classes socialmente constituídas.
Palavras chave: Posicionamento, Representações, Igreja, Pedofilia.
Abstract: This paper aims, based on linguistic-discursive forms which indicate thepositioning of the writers, to analyze the representations, identifications and ideological constructions built on three texts, in which the Catholic Church evaluates the accusations of clerical involvement in cases of pedophilia. Methodologically, it is followed the stages suggested by Fairclough (2003) which consists in the identificationof topic and identification of viewpoints about topics linguistically constructed. Among other results, it is observed the construction of a representation of priests which creditsthe Catholic clergy a singular prestige and power between classes socially constituted.
Keywords: Positioning, Representations, Church, Pedophilia.
1. Introdução
Não se pode mais, talvez jamais fosse possível, ignorar a visibilidade publica da religião e suas práticas no contexto social. Quer no plano da cultura enquanto comportamento, quer no da esfera sócio-política por meio do reconhecimento e enfrentamento atuais de problemas ambientais e de legislações específicas, os atores religiosos movimentam-se e trazem ao domínio público suas avaliações, seus discursos, suas perspectivas.
De vários lados, torna-se dificultoso, conforme acredita Burity (2008, p.84), reiterar diagnósticos tradicionais das ciências sociais para os quais a “secularização moderna, a sofisticação tecnológica, o individualismo e a cultura de massas levariam a um progressivo declínio das práticas religiosas e da presença pública das religiões”.
A despeito de uma visibilidade que acarrete à promoção dos preceitos e práticas religiosos, o que hodiernas acontece no contexto social religioso católico é a divulgação por diferentes canais de imprensa do envolvimento de clérigos em casos de abusos sexuais contra menores.
É inconteste, conforme salienta Carrasquila (2010, p.8), que a existência de delações acerca de abusos e escândalos de tipo ético e econômico principalmente sempre houve, todavia sem maior repercussão social. A novidade de hoje é não só o caráter primariamente sexual das denúncias, mas especialmente o modo como são facilmente manifestas. A divulgação instantânea é uma característica dos dias atuais.
Com vistas a esse todo desfavorável, em setembro de 2010, a Santa Sé – personificação jurídica do Estado do Vaticano – de que se deduz não somente o Romano Pontífice, mas também a Secretaria de Estado, o Conselho para os negócios públicos, e os demais Organismos da Cúria Romana, lança A Resposta da Igreja.
Essa resposta – objeto assente deste trabalho – torna conhecido, entre outras coisas, a avaliação das novas normas sobre os delitos mais graves, a instituição de procedimentos possivelmente capazes de dar assistência às vítimas de abusos, e o modo como a série de acusações divulgadas pela imprensa foi interpretada.
Objetiva-se a partir basilarmente dos pressupostos teóricos da Análise Crítica do Discurso textualmente orientada, via Fairclough (2001, 2003), e das Representações Sociais, segundo Moscovici (2009), Hall (1997), e Celani e Magalhães (2002), analisar a articulação linguística e implicação ideológica de representações e identificações no conjunto de textos que definem A Resposta da Igreja, enquanto um evento social especificamente significativo.
Para isso, lança-se mão da proposta metodológica de Fariclough (2003) que sugere, no empreendimento analítico dos modos de representar e ser, a identificação dos temas ou áreas da vida social em pauta nos textos, e a identificação dos pontos de vistas que agem sobre esses temas linguisticamente construídos.
Os textos que se encontram no site da Santa Sé são: Carta circular para ajudar as conferências episcopais na preparação de linhas diretrizes no tratamento dos casos de abuso sexual contra menores por parte de clérigos, em que assina o prefeito do Vaticano – Willian Cardinale Levada -, O significado da publicação das novas “Normas sobre os delitos mais graves”, cuja autoria é do diretor da sala de imprensa da Santa Sé – Federico Lombardi -, e Um contributo vital para a promoção de ambientes seguros em prol da juventude, do atual pontífice emérito Joseph Ratzinger – o papa Bento XVI.
2. Desenvolvimento argumentativo: reconhecendo e analisando as representações e identificações arquitetadas textualmente
As escolhas e disposição das formas ou expressões que asseguram um posicionamento no discurso efetivam, a partir da abordagem construcionista do significado na língua1, representações de como as coisas são e tem sido, bem como imaginários, entendidos como representações de como as coisas seriam, deveriam ou poderiam ser. Essa asserção assenta-se na própria lógica do funcionamento do significado avaliativo num discurso, qual seja, tencionar, de um dado prisma, a valia ou qualidade mais prazível que se não parece ser, pretende-se fazer.
Isso quer dizer que o discurso, isto é, uma forma particular de representar parte do mundo (Fairclough, 2003, p. 26), considerando os aspectos textualmente observáveis e inferíveis da avaliação textual, depende não somente da qualidade material do signo avaliativo, ou seja, das letras, sons, palavras que formalizam essa forma particular de representação, mas, sobretudo, da função simbólica que esse signo adquire dentro de um evento social como é A Resposta da Igreja.
A função simbólica de uma expressão capaz de aduzir um posicionamento no texto está em sua capacidade de servir a uma prática e a uma situação em que a avaliação de objetos, sentimentos e comportamentos porta-se como uma maneira eficiente de demonstrar uma possibilidade ou um ponto de vista sobre algum tópico dessa situação ou área da vida social.
Quais sejam essas possibilidades, tomando-as como representações de fatos trazidas em interações pelas formas avaliativas que funcionam de certa maneira e em favor de grupos específicos, elas não são inéditas e privativas, ainda que possam se apresentar sob a feição de originais e imprevisíveis.
Isso quer dizer que as pessoas que coletam fatos sobre a sociedade e os interpretam, avaliando-os, “não começam do zero a cada relato que fazem. Usam formas, métodos e ideias que algum grupo social, grande ou pequeno, já tem à sua disposição como maneira de fazer esse trabalho” (Becker, 2009, p.27).
Fairclough (2003, p.129) acredita que “nós podemos pensar o discurso como (a) representando alguma parte particular do mundo, e (b) representando-a de uma perspectiva particular”. Em razão disso, ele sugere a fim de se atentar para os modos de representar fatos em discursos dois movimentos ou, maneiras de se atuar analiticamente diante disso.
O primeiro deles é “identificar as partes principais do mundo (incluindo áreas da vida social) que são representadas – os temas principais” (Fairclough, 2003, p. 129). Cada tema identificado, em princípio, está aberto a uma variedade de diferentes posições, diferentes representações, e diferentes discursos.
O outro movimento, contíguo ao primeiro, diz respeito a “identificar a perspectiva ou ângulo particular ou ponto de vista pelos quais eles [os temas] são representados” (Fairclough, 2003, p.129). A possibilidade desses ângulos particulares, nem sempre facilmente perceptíveis, somente afirma as diferentes facetas que um tema ou área da vida social pode adquirir no discurso.
Ao ponderar esses dois movimentos, é provável a observação não apenas de panoramas do mundo físico, normas, valores e símbolos do mundo social, como relativos aos modos de representar, mas também de expectativas que as pessoas lançam sobre si mesmas como atores de um evento social numa conjuntura específica (Celani & Magalhães, 2002, p. 321).
Essas expectativas consentem, associado aos modos de representar, o exame dos modos de ser. Segundo Fairclough (2003, p. 157-164), a identificação dos sujeitos na linguagem, ou os modos de ser, é tanto uma questão individual como coletiva, no sentido de pertencimento a grupos sociais ou comunidades, e o foco nos estilos, enquanto elemento importante dessa identificação, envolve o interesse de uma série de aspectos linguísticos, dentro os quais está a avaliação e com ela age para representar.
Quer individual, quer coletiva, a identificação dos sujeitos na linguagem dispõe que as pessoas “podem afirmar suas particularidades e individualidades e estabelecer identidades distintas para si mesmas em face das práticas de linguagem que crescentemente são homogeneizadas e inevitáveis” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p.13).
Sem embargo, Castells (2006, p.6) julga que a identificação dos sujeitos na linguagem é conferida por meio de um processo de individualização. Isso quer dizer e reconhecer que as identidades podem ser “também originadas de instituições dominantes, [todavia] ativadas somente quando e se atores sociais as internalizarem, e construírem seus significados em volta dessa internalização” (Castells, 2006, p.7). Os significados, na perspectiva do autor, são demonstrações simbólicas de um propósito de ação de um ator social.
Assim, assumindo a conjugação dos modos de representar e ser em formas particulares de seleção, contextualização, tematização e avaliação dos fatos, o excerto abaixo é instrutivo à investigação que se faz:
- O clérigo acusado goza da presunção de inocência atéprova contrária, mesmo se o Bispo, com cautela, pode limitar o exercício do ministério, enquanto espera que se esclareçam as acusações. Em caso de inocência, não se poupem esforços para reabilitar a boa fama do clérigo acusado injustamente.
Essa interpretação sobre o ponto de vista identificado possui sustentáculos materiais, quer dizer, formas linguístico-avaliativas, bastante sugestivos. O primeiro deles, reportado no próprio excerto, diz respeito ao uso do epíteto “boa” que qualifica e, ao mesmo tempo, define um estado natural de conduta cotidiana irrepreensível e reconhecida do clérigo anterior a qualquer acusação.
O segundo, demonstrado com o excerto (II), tem a ver com a orientação da expressão modal e avaliativa “eventuais” para um contínuo impreciso de frequência que coloca em questão a factual existência do ato pedofóbico e, consequentemente, a participação clerical nas infrações delatadas.
- Os sacerdotes devem ser informados sobre o dano provocado por um clérigo à vítima de abuso sexual e sobre a própria responsabilidade diante da legislação canônica e civil, como também a reconhecer os sinais de eventuais abusos perpetrados contra menores; (grifo meu).
Essa pretensão não parece, segundo Jenkins (1996, p.168), corresponder às visões sobre o prestígio sacerdotal surgidas mais peremptoriamente a partir da década de noventa do século vinte e um. Para o pesquisador, esse prestígio tem se desgastado ao longo dos anos:
O selvagem anti-catolicismo do século XIX e início do século XX não impediu a Igreja [Católica] de manter o alto prestígio popular ou, de fato, de recrutar um grande número de padres em perspectiva. Até nesse momento, porém, a situação obscura da Igreja era apenas resultante de uma competição [com os protestantes], uma vez que não era compartilhada pelos próprios católicos. O ambiente [ou conjuntura] da década de 1990 é diferente em muitos aspectos, e o número de vocações sacerdotais atingiu uma baixa histórica, mesmo antes da crise atual [referente aos casos de pedofilia]. Que a situação vai piorar num curto prazo parece inevitável. O prestígio sacerdotal foi severamente danificado, e até mesmo em comunidades católicas tradicionalmente leais, há evidências de intensa oposição das famílias em permitir a entrada de meninos no seminário e até mesmo de se tornarem coroinhas (Jenkins, 1996, p.168).
Paralelo e simultaneamente, o excerto (I) oferece, com implicações ideológicas mais efetivas, outra leitura a partir dos movimentos sugeridos por Fairclough (2003), sem prejuízo da que serve e identifica o discurso jurídico, já que demonstra notáveis similaridades. Nessa alternativa, o discurso bíblico é evocado para definir o tema justiça divina, o ponto de vista cristão e um modo de ser juiz, porquanto delibera, pelo que conta o uso da metáfora ideacional2 “acusação” no conjunto de conhecimentos judaico-cristãos, a inocência do réu.
O uso da metáfora ideacional “acusação” no conjunto de conhecimentos judaico-cristãos demonstra um significado pouco patente. Esse significado considera diacronicamente a definição etimológica do latim, para a qual estão previstas acepções que sinalizam a impropriedade do acusador em acusar, ao pressupô-lo falacioso e passional.
A tais pressuposições, relaciona-se, via cotejamento etimológico, diaballein – atacar falsamente -, diabolus – caluniador, espírito da mentira -, no grego diabolos – acusar com paixão. Esse cotejamento, de que faz parte fundamentalmente accusationis ediabolus e que redimensiona em termos semânticos o primeiro em função do segundo, aciona abstrações de experiências religiosamente validadas e negativamente ajuizadas, uma vez que possibilita, de maneira indireta e intertextual, o julgamento sobre aquele que acusa – o acusador.
O julgamento relacionado ao caráter está calcado em convicções éticas que perfilam a idoneidade das pessoas avaliadas. Sendo assim, ao antever, pela metáfora ideacional “acusação” a suspeita ou conjectura desfavorável acerca da probidade ou imparcialidade dos que sinalizam o envolvimento de clérigos em casos de pedofilia, o que se afirma é a ilegitimidade moral dos delatores, sob suas diversas instâncias, ou seja, paroquianos, debatedores, canais de imprensa.
Esse significado possui implicações ideológicas mais efetivas porque a ação da ideologia, sobre que se entende “construções de práticas a partir de perspectivas particulares que suprimem contradições, antagonismos, dilemas de acordo com os interesses e projetos de dominação” (Chouliaraki & Fairclough, 1999, p.26), é menos visível, já que só se reconhece por um token de atitude3.
A invisibilidade ou menos visibilidade da ação ideológica é alcançada quando as ideologias são trazidas para o discurso não como elementos explícitos do texto, “mas como pressupostos de fundo que, por um lado, levam o produtor do texto a textualizar o mundo de uma forma particular, e, por outro lado, levam o intérprete a interpretar o texto de uma forma particular” (Fairclough, 1989, p.85).
De acordo com Fairclough (1989, p. 85), se alguém se torna consciente de que um determinado aspecto do senso comum, ou não tão comum assim, como por exemplo, a alusão ao mal relacionada ao acusador, sustenta desigualdades de poder em detrimento de si próprio, “aquele aspecto deixa de ser senso comum e pode perder a potencialidade de sustentar desigualdades de poder, isto é, de funcionar ideologicamente”.
A compreensão sobre o funcionamento ideológico – que se define com a metáfora ideacional “acusação”, sob o ponto de vista cristão, o processo de incriminação de clérigos – exige que se considere mais profundamente o modo de operacionalização da ideologia e a estratégia de construção simbólica típica para o uso.
O modus operandi da ideologia nesses casos pode ser identificado comodissimulação. O que se realiza na dissimulação é o ato de ocultar, negar ou obscurecer um acontecimento ou uma relação de dominação representando-os de uma maneira que “desvia nossa atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes” (Thompson, 1995, p.83).
Assim, o julgamento que coloca em suspeição, por meio da metáfora ideacional “acusação”, a probidade ou imparcialidade dos que sinalizam o envolvimento clerical em casos de pedofilia – a imprensa mais notavelmente – desvia o foco da possível infração cometida pelo clérigo para o caráter e comportamento dos acusadores, especialmente dos jornalistas que promovem os debates sobre o assunto.
Esse caráter e comportamento, avaliado depreciativamente e recuperado na origem etimológica do termo contribui para que a estratégia de construção simbólica seja reconhecida como expurgo do outro. Essa estratégia envolve a construção de um inimigo, assim como o diabo é representado no conjunto de conhecimentos judaico-cristãos, “que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos [pressupõe-se os fiéis católicos] são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo” (Thompson, 1995, p.87).
A resistência coletiva evocada nessa estratégia de construção simbólica apresenta uma “elaboração demonológica de uma cristandade [o diabo, belzebu, satanás] que inclui crenças populares com certa conotação negativa” (Lira, 2011, p.90). Quais sejam essas crenças, no conhecimento judaico-cristão , elas ativam uma entidade antagonista cuja natureza é a mentira e uma representação estritamente maléfica (Lira, 2011, p.91).
Na dicotomia bem e mal, em que o mal representa especialmente a imprensa, cuja qualidade de falaz é dada a conhecer, a atuação episcopal, enquanto índice da Igreja, significa, de acordo com o excerto (III), assistir as vítimas e os seus familiares tanto no âmbito espiritual quanto no psicológico:
- A Igreja, na pessoa do Bispo ou de um seu delegado, deve se mostrar pronta para ouvir as vítimas e os seus familiares e para se empenhar na sua assistência espiritual e psicológica. No decorrer das suas viagens apostólicas, o Santo Padre Bento XVI deu um exemplo particularmente importante com a sua disposição para encontrar e ouvir as vítimas de abuso sexual. Por ocasião destes encontros, o Santo Padre quis se dirigir às vítimas com palavras de compaixão e de apoio, como aquelas que se encontram na sua Carta Pastoral aos Católicos da Irlanda (n.6): “Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade”.
Esse modo de ser fiscalizador age sobre o tema assistência social segundo o ponto de vista da medicina terapêutica, já que preceitua, dentro da competência determinada ao bispo ou a um delegado seu, certos procedimentos ou conselhos, como por exemplo, ouvir e oralmente intervir, mais próprios desse ponto de vista.
Esse ponto de vista identificado contempla o processo formativo sacerdotal que, segundo Benelli (2008, p.204), contém “orientações teológicas relativas ao presbiterato e seus desdobramentos pedagógicos, psicológicos e espirituais” (grifo nosso). Para o autor, o possível estranhamento com o aspecto psicológico na formação sacerdotal parece consistir no “desconhecimento da ação, das práticas institucionais cotidianas realizadas pelos diversos atores implicados na produção dessa realidade social específica” (Benelli, 2008, p.210).
Assim, a produção dessa realidade social específica – a que se associam os programas de engajamento e assistência social apoiados na formação e atuação sacerdotal – funciona n’A Resposta da Igreja, com base no excerto acima, de maneira a reforçar o processo de reabilitação das crianças e jovens prejudicados – representados como vítimas mentalmente desorganizadas.
Tal processo está equacionado para a resolução do que se considera e representa como uma crise. O excerto (IV) é próprio para instruir essa possibilidade interpretativa, uma vez que constrói uma postura pesarosa diante do tema “momento atual”, sobre o qual a Igreja se propõe a dizer:
- Será outro passo crucial no caminho para que a Igreja ponha em prática permanente e em consciência contínua os frutos dos ensinamentos e das reflexões amadurecidos no decorrer da dolorosa vicissitude da“crise” devida aos abusos sexuais da parte de membros do clero. (grifo meu)
Desse ponto de vista, a crise é a representação do desiquilíbrio da “forma de controle da produção reificada que adquiriu [a partir de um viés capitalista] o poder de aglutinar os indivíduos num padrão de produção hierárquico estrutural e funcional possuindo uma lógica de reprodução” (Maranhão, 2009, p.629).
Considerando o encargo e compelimento de por, ou apresentar-se no lugar de, de concordar ou criar uma nova realidade de significados, haja vista por percurso semasiológico 4 do signo que define o nome do evento social “resposta” – do latimrespondere – a necessidade de dizer pela coisa, acontecimento ou algo [res = coisa, acontecimento; spondere = dizer em nome de] que está ou tem sido posto, a crise, enquanto representação a partir do ponto de vista econômico, produz basicamente dois efeitos: (1) a admissão do, e responsabilidade pelo desiquilíbrio da forma de controle sobre a ação clerical, enquanto situação posta ou inevitada, o que contraria a inocência afirmada e advogada a partir da representação deflagrada com o uso da metáfora ideacional “acusação”; (2) o caráter provisório, isto é, finito, desse desiquilíbrio ou descontrole.
A interinidade do descontrole pode ser vista, atentando para a impossibilidade de se assegurar com preciso grau de exatidão a finitude do que se representa discursivamente como crise, como um estratégia típica de construção simbólica caracterizadamente eufêmica, ou seja, uma eufemização.
Para Thompson (1995, p.84), a eufemização, enquanto um estratagema, isto é, uma forma de dissimulação, denota que “ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoração positiva”. Entretanto o que se realiza n’A Resposta da Igreja, segundo o excerto (XII), não é tanto o atiçamento de uma valoração positiva do momento em que a Igreja vivencia, mas sim o ato de minorar o aspecto negativo desse momento, creditando-o determinado no tempo. É nesse sentido que se dá a eufemização.
3. Considerações finais
Assim como o conhecimento social é inevitavelmente parcial, a análise discursiva textualmente orientada é inevitavelmente seletiva, no sentido de que se escolheu responder determinadas questões sobre um evento social e textos nele envolvidos e com isso abriu-se mão de outras questões possíveis. A escolha das questões a serem respondidas denuncia necessariamente as motivações particulares da análise, visto que delas derivam.
A partir dessas motivações, parece razoável, pelo menos no que se restringe ao evento social A Resposta da Igreja, a lógica social, defendida por Squizzato (2011, p.10), segundo a qual os sacerdotes, enquanto representação de si, têm-se creditado, com a tentativa de controle do que se acredita sobre os fatos sociais, inclusive sobre si mesmos, uma classe à parte, dominante e prestigiada, quer dizer, uma casta. Essa presunção tem sido rechaçada em virtude das recentes tensões com diversos órgãos de imprensa e de acusações de natureza diversas, inclusive sexual.
A respeito da relação Igreja e imprensa, pode se dizer, com base no evento social analisado que a representação da última é construída como que um mal social que deve ser combatido. Sendo assim, ao antever, pela metáfora ideacional “acusação” a suspeita ou conjectura desfavorável acerca da probidade ou imparcialidade dos que sinalizam o envolvimento de clérigos em casos de pedofilia, o que se afirma é a ilegitimidade moral dos acusadores.
Do ponto de vista da construção ideológica, a representação da imprensa como um mal cria uma resistência por meio da estratégia típica do expurgo do outro. A resistência coletiva evocada nessa estratégia de construção simbólica apresenta uma “elaboração demonológica de uma cristandade que inclui crenças populares com certa conotação negativa” (Lira, 2011, p.90). Essas crenças ativam uma entidade antagonista cuja natureza é a mentira e uma representação estritamente maléfica (Lira, 2011, p.91). Nesse sentido, a Igreja é representada como o bem que resiste ao mal, e que, nesse momento de instabilidade conflitual, todavia terminável, assiste às vitimas de abusos com o apoio psicológico necessário.
Finalmente, ao tratar esse momento de instabilidade como um momento de “crise” a Igreja, entretanto, admite a responsabilidade pelo desiquilíbrio da forma de controle sobre a ação clerical, enquanto situação posta ou inevitada, o que parece contrariar a inocência afirmada e advogada a partir da representação deflagrada com o uso da metáfora ideacional “acusação”.
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1 Segundo Hall (1997, p.18-19) são três as abordagens que tratam do funcionamento da representação de significados a partir da linguagem: reflexiva, intencional e construcionista ou construtivista. Na primeira, pensa-se que o significado esteja no objeto, no evento ou pessoa do mundo real, e que a linguagem funcione como um espelho a refletir o verdadeiro significado, por este já existir no mundo. A segunda sustenta que é o falante que impõe ao mundo através da linguagem seu significado único. Por fim, a abordagem construcionista, adotada neste trabalho, reconhece a característica social da linguagem. Nesse sentido, as coisas não significam por si próprias; são, sobretudo, construídas por meio de sistemas de representação, isto é, conceitos e signos.
2 A metáfora ideacional, do ponto de vista da Linguística Sistêmico-Funcional significa uma variação na expressão mais típica de um dado significado, ou seja, ao invés de “X abusa de Y” ou “X responde a Y” prefere-se o uso de formas mais abstratas como “abusos” e “resposta” respectivamente. As formas mais abstratas são constituídas, nesses casos, pela indeterminação dos participantes sob os quais se legitimam osprocessos “abusar” e “responder”, uma vez que por estes estão previstos.
3 Facilita aduzir que um token de atitude, do ponto de vista da Linguística Sistêmico-Funcional, é um mecanismo textual capaz de recuperar, por meio da atividade discursiva de inserção contextual, quer dizer, de uma inferência, um posicionamento pouco patente (Martin & White, 2005, p.61).
4 O percurso semasiológico tenta compreender um discurso pela identificação e interpretação dos diferentes elementos discursivos que o compõem, num movimento que parte do signo para o conceito.