FIAT CREATIVITAS. Intersemiótica e inventividade na tradução de ideias e conceitos em comerciais da Fiat no Brasil
Alberto Emerson Werneck Dias
Mestre em Linguística – Universidade de Brasília (Brasil)
E-mail: [email protected]
Dr. Roberto Pigro
Dr. em Ciências da Antiguidade – Universidade de Udine (Itália)
E-mail: [email protected]
Resumo: Há ainda poucos estudos sobre tradução intersemiótica, especialmente do e para o português. Este trabalho analisa a tradução intersemiótica ou transmutação de comerciais televisivos da fábrica de automóveis italiana Fiat no Brasil, ao longo de 36 anos, verificando o que foi conservado dos originais italianos nos produtos finais, e o que se ganhou com a transposição escolhida. Verifica-se que os publicitários fizeram opções ao traduzir que foram determinadas tanto por fatores linguísticos como semióticos. A análise aponta para a possível existência de um novo tipo de tradução, a conceitual.
Palavras-chave: Tradução intersemiótica; italiano; português; transmutação; tradução conceitual
Abstract: There are still few studies on intersemiotic translations, especially from and into Portuguese. This work analyzes the intersemiotic translation or transmutation of television advertisements of the Italian car maker Fiat in Brazil, in a span of 36 years, verifying what was kept from the Italian originals in the final products, and what was gained with the chosen transposition. It is shown that the advertisers made options in translating that were determined both by linguistic and semiotic issues. The analysis points to the possible existence of a new kind of translation, the conceptual one.
Keywords: Intersemiotic translation; Italian; Portuguese; transmutation; conceptual translation
Introdução
Embora já se tenha avançado consideravelmente nos estudos tradutológicos a partir da introdução do conceito de tradução intersemiótica, com Roman Jakobson (1979: 63), resta ainda muito campo a ser explorado no âmbito das produções artísticas multimediáticas, como é o caso da publicidade televisiva e na internet. Mais ainda se oferece à exploração acadêmica, se considerarmos a recentidade de tais estudos no contexto do Brasil e da língua portuguesa.
Aliás, causa certo espanto que haja comparativamente poucos estudos sobre tradução para ou a partir de língua portuguesa, se se observam os números do Ethnologue[1], que aponta haver atualmente cerca de 178 milhões de falantes do português no mundo. Lembra-nos o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com seus dados do Censo 2010[2], que os números devem ser bem mais altos, uma vez que, só no Brasil, a população já soma pouco menos que 190 milhões.
Por tradução intersemiótica ou “transmutação” entende-se:
aquele tipo de tradução que ‘consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais’, ou ‘de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, o cinema ou a pintura’, ou vice versa. (Plaza 2001: xi)
Este estudo se apresenta como possível contribuição ao estudo das traduções intersemióticas, ao suscitar uma necessidade de aprofundamento nas pesquisas que trabalhem a tradução não necessariamente de textos verbais (embora possa envolvê-la), mas de textos intersemióticos, que se apresentem na forma de comerciais televisivos, nos quais não se encontra correspondência direta entre os discursos visual, verbal e auditivo, embora haja coerência de propósitos e de significação. Para tanto, abordaremos comerciais televisivos (também veiculados na internet, em sua maioria), produzidos tanto na Itália quanto no Brasil, ao longo de mais de trinta anos, para divulgação de modelos emblemáticos de automóveis de passeio fabricados pela Fiat Automóveis.
Se a Roman Jakobson cabe o mérito da distinção e definição da tradução intersemiótica como fenômeno, a Julio Plaza cabe o mérito da fundamentação e o desenvolvimento de uma teoria sobre esse fenômeno aplicado ao campo das artes plásticas. A teoria de Julio Plaza (2001, p.xii) enfoca a tradução intersemiótica como “forma de arte” e “prática artística”, como ele mesmo definiu. (Hirashima 2005: 83)
O principal objetivo, portanto, do presente estudo é demonstrar como tais comerciais, embora não tenham correspondência direta entre um spot e outro, ao longo dos anos, contribuíram para veicular artisticamente uma imagem do fabricante de identificação com a cultura do país alvo e compromisso com a inovação e criatividade, recriando totalmente comerciais televisivos, ao buscar atender aos anseios de consumo de mercados tão parecidos e tão díspares, à vez, como a Itália e o Brasil.
Talvez esse mesmo compromisso com a inovação e inventividade, tão bem retratado nos comerciais italianos para o Fiat Uno dos anos 80, com o slogan «Tutto il resto è relativo» (= Tudo o mais é relativo), tenha determinado a opção do fabricante italiano em não fazer transposições literais dos textos de divulgação ou mesmo dos slogans de nenhum de seus veículos comercializados no Brasil, provavelmente considerando que uma fábrica filial já havia se estabelecido no Brasil desde 1973, e que os produtos Fiat já haviam sido assimilados pelo mercado brasileiro como parte também da cultura brasileira.
Interessante notar que produtos italianos mundialmente reconhecidos como tal sempre tiveram boa aceitação no Brasil, mas somente após uma “aclimatização”, ou “localização” de suas características (veja-se o caso da pizza e do macarrão, “abrasileirados” em seu sabor e preparo, e da música popular italiana, que atualmente só é amplamente consumida pelos brasileiros em versões para o português).
É esta identificação cultural com o público brasileiro, representada nos esforços de recriar o clima de inovação dos comerciais italianos, ao serem transpostos para o Brasil, que será examinada neste estudo, ao nos debruçarmos sobre o resultado dos esforços dos publicitários brasileiros em traduzir mais que cada comercial, o conceito geral que desejavam associado à imagem institucional da Fiat.
Português e italiano: tão próximas, tão distantes
Desnecessário relembrar a proximidade entre os idiomas português e italiano, vez que ambos neolatinos. No entanto, tal proximidade, ao passo que facilita a correspondência textual em muitos casos, traz consigo armadilhas de natureza tanto linguística como extralinguística, quando contextos não são prontamente tradutíveis, ameaçando a possibilidade de tradução do comercial como um todo.
O primeiro obstáculo se dá, em nosso caso, pelo fato de, no Brasil, os termos o carro, o automóvel, o veículo terem sempre a associação principal com características masculinas, como força, poder e liderança, quando, na Itália, l’auto, l’automobile, la macchina, la vettura, l’autovettura (femininos) são associadas a propriedades mais femininas, como a atratividade.
Claro que se deve levar em conta a mudança conceitual que vem ocorrendo no mundo, e em especial no Brasil, com relação à significação do masculino e do feminino, não menos pelo fato de o Brasil haver recém eleito sua primeira Presidente da República. No entanto, levará ainda certo tempo até que se associe um carro no Brasil ao universo feminino. Veremos mais adiante como esta associação com as mulheres funciona muito bem em um comercial do Punto na Itália, mas não funcionaria tão bem no Brasil.
Fato é que, tivesse a Fiat decidido por traduzir a maioria de seus comerciais de forma literal, ou próxima disso, no Brasil, seu apelo comercial não seria o mesmo e, muito provavelmente, seu sucesso de vendas tampouco.
Queremos defender que foi exatamente o uso pensado da “transmutação”, ou tradução intersemiótica (Jakobson 1979: 64), nos comerciais brasileiros da Fiat que determinaram o sucesso das campanhas do fabricante italiano no mercado do Brasil.
Os comerciais originais da Fiat veiculados na Itália e aqui estudados guardam tamanha aderência significativa com a cultura italiana, que seria inócua qualquer tentativa de tradução literal. Ou seja, o comercial do Fiat Punto no Brasil, ainda que feito pela mesma agência publicitária (como no caso da agência Leo Burnett), não guarda semelhança textual com seu original italiano, mas ganha em muito com sua “adaptação” para o gosto do brasileiro.
Tradução sem correspondência direta
Evidente está que, numa análise intersemiótica, devemos considerar pelo menos três planos de significação: o do visual, o da trilha sonora, e o das falas ou textos. Para isso, descreveremos brevemente os comerciais italianos escolhidos e compara-los-emos com outros spots semelhantes veiculados no Brasil.
Reforce-se aqui a ideia que queremos defender, de que a tradução que se está analisando não é a de um produto textual versus outro produto textual, sim da própria produção textual, ou seja, analisa-se aqui a tradução do conceito ‘carro Fiat’ como produto vendável, desejável e inovador. O que se vende é o novo, não o carro, mas este lhe vem como acessório, ou prêmio, pelo associar-se do consumidor com a ideia de inovação.
A dificuldade em traduzir comerciais televisivos não é tanto linguística como é semiótica. Afinal, Jakobson nos lembra que «toda experiência cognitiva e sua classificação pode ser expressa em qualquer língua existente» (Jakobson 1979: 66), embora para garantir maior fidelidade, seja preciso maior quantidade de informação verbal. Ora, se no universo da publicidade televisiva tempo é dinheiro, é imperioso dizer mais em menos tempo. Explicações dos conteúdos humorísticos, ou de jogos de palavras, ou até de referências intertextuais que se usassem nos comerciais brasileiros, não só matariam o espírito dos comerciais italianos, como inviabilizariam sua veiculação em horário nobre na TV brasileira.
Portanto, é de se aplaudir a iniciativa dos publicitários brasileiros contratados pela Fiat, que nem mesmo o visual ou as músicas dos spots originais aproveitaram, literalmente recriando peças publicitárias que conservassem a ideia de inovação e exclusividade, além da própria identificação com o universo cultural local.
É de todos sabida a ineficácia da tentativa de se transpor literalmente até mesmo o nome dos automóveis, sendo o exemplo mais gritante o caso do Ford Nova, que se tornou um fiasco nos países de língua espanhola, por ser associado à expressão no va (= não funciona). Outro exemplo é o do Fiat Ritmo, que antes de ser comercializado nas regiões dos Estados Unidos em que se fala espanhol mudou de nome para Strada, por ser o termo ritmo associado ao termo local para ‘período menstrual’.
Daí ser acertada a opção da Fiat por traduzir o espírito, mas não o conteúdo textual de seus comerciais italianos no Brasil. É a tradução intersemiótica que assegura produzir efeitos análogos com meios diferentes, como aponta Paul Valéry (cf. D’Angelo 2004: 136).
Análise dos comerciais italianos da Fiat e suas transmutações
Assim, passamos agora a analisar alguns comerciais italianos da Fiat e seus contrapontos brasileiros, apontando o que se ganhou na tradução, no sentido mais amplo. Ressalte-se que, em alguns casos, há carros que são comercializados apenas pela fábrica brasileira da Fiat, como o Novo Uno. E por isso foram escolhidos somente comerciais brasileiros de lançamento de determinados modelos no Brasil, em contraposição a comerciais italianos que, ainda que não fossem de lançamento, fossem marcos da inovação associada aos modelos em questão.
Primeiro analisemos um comercial[3] da campanha «Uno, che passione!» (= Uno, que paixão!). O inovador, neste caso, é a publicidade mostrar um mesmo carro sendo utilizado por diversas pessoas aleatórias em seguida, como para significar que o Uno serve para todos indistintamente. Note-se que, no spot, as pessoas se apoderam instantaneamente do carro, sem estranhamentos ou hesitação, como se fosse seu próprio carro, ou seja, veiculando a ideia de familiaridade. Visto em retrospectiva, talvez não se perceba tanto o impacto deste comercial, mas o fato é que a campanha lançou no discurso cotidiano dos italianos a expressão che passione, e, para o mais latino dentre os povos latinos, nada como a exacerbação do emocional, do apaixonado, do amor. Assim, qualquer tema em que alguém se envolvesse um pouco mais que o normal, como no futebol, ou em uma discussão de bar, alguém logo diria: «Che passione!».
Vejamos agora o impacto do comercial[4] veiculado para o modelo Novo Uno, fabricado apenas no Brasil. O spot é baseado na simplicidade auditiva, com apenas uma melodia instrumental de fundo, sem muita personalidade, mas um visual agressivo, com muitas cores e formas, em um cenário que vai se preenchendo à medida que várias pessoas chegam ao local em modelos Novo Uno de diversas cores e tipos, e vão montando uma cidade inteiramente nova, a partir de objetos que vão retirando de seus carros. A única fala do comercial é «Novo Uno. Novo tudo.», acompanhada do respectivo texto escrito. Muito explícita a ênfase no conceito de inovação.
O parco uso do verbal neste comercial brasileiro de 2011 é um contraponto ao verboso comercial[5] do Uno veiculado na Itália em 1983, com o já aludido lema «Tutto il resto è relativo», que reforça a ideia de exclusividade, absolutismo. Naquele comercial, o texto é também inovador, ao caricaturar as qualidades do modelo positivamente, pelo uso do sufixo -osa em adjetivos que não o necessitam, tema explorado pelo linguista Luca Serianni (1988: 545). Deste modo, começa o texto com «È comodosa. È sciccosa. È risparmiosa. È scattosa» (= É confortavelosa. É chicosa. É economicosa. É rapidosa), para em seguida afirmar que o automóvel é confortável, elegante, econômico, brilhante, potente e entusiasmante «come nessuno» (= como nenhum outro), mas fazendo um jogo de palavras intradutível, no qual as últimas sílabas de nessuno coincidem com as primeiras duas de outras vozes dizendo «Uno, è una Fiat» (= Uno, é um Fiat). Para completar o impacto, o visual fica por conta de uma animação feita pelo renomado desenhista Giorgio Forattini, com clara intenção de comunhão com os jovens e com a cultura italiana.
Em 1984, a Fiat brasileira lança o modelo Uno localmente, com um comercial[6] mais enxuto, no qual uma música suave ao fundo é acompanhada de vozes femininas cantando «Fiat Uno» diversas vezes, ao passo que se mostram várias imagens de grandes inventos, como o fogo, a roda, a lâmpada, o telefone e o clipe, para logo adiante terminar com a imagem do carro, acompanhada da fala «De tempos em tempos, o homem produz uma obra de gênio. Fiat Uno.», e do texto «Uno! Fiat. Com a ousadia dos gênios». Deve-se destacar o acerto da manutenção do nome Uno no Brasil, pois tem o mesmo impacto da inclusão do ponto de exclamação, e a ideia de que o modelo é único, além de sugerir ser o primeiro na categoria. Não se descarta também a associação aos jovens, por evocar um popular jogo do mesmo nome.
Para o modelo Bravo, em 2007, a fábrica italiana produziu um comercial[7] também inovador, no sentido de ser a própria música tema quem se encarrega de descrever o produto. É utilizada a canção Meravigliosa creatura, de Gianna Nannini, famosa em toda a Itália. A letra sugere bravura e desbravamento de obstáculos, com o texto «Molti mari e fiumi attraverserò, dentro la tua terra mi ritroverai, turbini e tempeste io cavalcherò, volerò tra i fulmini per averti, meravigliosa creatura...» (= Muitos mares e rios atravessarei, dentro da tua terra me encontrarás, torpedos e tempestades cavalgarei, voarei por entre os raios para te ter, maravilhosa criatura...). Não se pode esquecer o slogan adotado para este comercial, que foi «Bravo. Made in Fiat». Isso porque os publicitários mostraram mais uma vez uma identificação da marca com a cultura italiana, que prestigia seus cantores populares, mas valoriza também as influências do estrangeiro, o que se mostra na opção pelo uso do inglês. Verdade é que a expressão de uso corrente na Itália é made in Italy, como fruto do orgulho da exportação, mas o fabricante soube utilizar esse orgulho para associar diretamente a imagem da Fiat à da Itália. No Brasil, o uso do inglês na publicidade é muitas vezes restringido até por leis, como a de proteção ao patrimônio linguístico.
Vemos a mesma preocupação com a identidade cultural no comercial[8] do Bravo de 2010. Aqui, com um visual impregnado por números relativos às qualidades do carro, ouvimos, desde o início, um trecho imponente da obra Verão, das Quatro Estações de Vivaldi. A intenção é claramente dizer que os números falam por si, mas, ao mesmo tempo, de identificar a marca Bravo com a sofisticação da música clássica, e a marca Fiat com a cultura italiana, vivificando a obra de um de seus maiores expoentes. O lema aqui é «I numeri non sono mai stati così belli» (= Os números nunca foram tão belos). Há também uma ênfase na beleza das formas do carro, pelas imagens e pela associação com a música clássica.
Ao ser lançado no Brasil, o Bravo ganhou uma versão brasileira do comercial[9], que busca o impacto dos números na atmosfera digital do texto, que vai se desfilando em meio aos detalhes tecnológicos ressaltados pelo visual. Mas a música clássica não está tão arraigada no Brasil como na Itália, e a identificação com o público alvo fica por conta da música eletrônica escolhida, que evoca as noitadas que embalam grande parte dos jovens brasileiros. Além disso, o jogo de palavras agora é dirigido ao público do Brasil, mais acostumado a associar a palavra bravo com braveza, já que o texto começa com: «Aproveite enquanto ele está calminho...». O lema aqui é «A bravura está de volta.».
No lançamento[10] do Punto na Itália, em 2005, volta o fabricante a apostar no uso escasso do verbal para vender o produto. A inovação está na ironia do uso de uma canção que se chama Senza parole (= Sem palavras) para dizer com a letra a mensagem do comercial. Trata-se de um rock de Vasco Rossi, famosíssimo na Itália, mas desconhecido no Brasil. A letra diz: «E ho guardato dentro un’emozione / e ci ho visto dentro tanto amore / Che ho capito perché non si comanda al cuore. / E va bene così... Senza parole... Senza parole...» (= E guardei dentro uma emoção / E já vi dentro tanto amor / Que entendi porque não se comanda o coração / E assim está bem... Sem palavras... Sem palavras...). Novamente grande identidade cultural com o público alvo, escolhendo uma música muito conhecida dos jovens italianos, e com o ritmo provocante do rock. Que não se esqueça do jogo de palavras que não se traduz diretamente ao português, criado com o próprio nome do modelo, Punto, que é ‘ponto final’ em italiano. Vê-se aqui de novo a intenção de passar a ideia de exclusividade. O lema diz «È arrivata. Punto.» (= Chegou. Punto [Ponto final]), como a dizer que nada mais precisa ser dito, ou que nenhum outro carro precisa ser feito.
Já no comercial[11] de 2007 para o lançamento do Punto no Brasil, a fábrica faz um apelo ao imaginário dos jovens brasileiros. Primeiro, escolhendo uma música de ritmo jovem em inglês (Shut your eyes), mas de autoria de um desconhecido grupo da Suécia, os Shout Out Louds. Depois, propondo uma viagem ao inconsciente, mostrando um jovem que compra uma bola de cristal com uma moça dentro, e depois vê essa moça correndo pelas ruas, envolta em uma redoma, até que ele freia bruscamente, e a bola e a redoma se partem ao mesmo tempo. E o locutor pergunta: «Você faz as coisas acontecerem? Fiat Punto. Você no comando.». A inovação na escolha da música se mostrou acertada, pois a música caiu no gosto da juventude brasileira, e os comerciais do Punto estiveram durante muitos dias entre os vídeos mais acessados na internet brasileira. A perda do jogo de palavras foi bem compensada pela ideia de que o absoluto e exclusivo é o próprio consumidor («Você no comando»). A música Shut your eyes foi reaproveitada em outros spots da campanha, e até reestilizada e regravada pelos produtores, para maior impacto, como no comercial[12] da heroína dos quadrinhos, no qual um rapaz vê uma ilustração de uma garota em uma banca de revistas, e ela se materializa para viver uma aventura com ele. Aqui o lema é: «Você realmente vive cada dia? Fiat Punto. Você no comando.».
Aliás, esta tendência de direcionamento da publicidade da Fiat para os jovens fica bem marcada em outro comercial[13] de 2012 para o Novo Uno. Aproveitando a onda de sucesso que levou o hit do momento no Brasil a viajar para quase todos os países, o fabricante faz um comercial bem colorido, bastante kitsch, bem ao gosto das multidões que apreciam o chamado sertanejo universitário, e convida o próprio cantor Michel Teló (lançador do ritmo mundialmente) para aparecer na propaganda, ao som da sua canção mais conhecida, a tão controversa «Ai, se eu te pego!». O texto até imita o estilo dos caraoquês, com uma pequena bola acompanhando as palavras, no ritmo da música. Mas para fugir da controvérsia, o texto do comercial avisa que «Pode colocar até o sucesso do momento. O Novo Uno vai continuar sempre descolado.». Há um jogo de palavras sutil, pois o termo descolado pode significar ao mesmo tempo jovial e sem apegos, talvez como um pedido de desculpas, uma licença para usar uma música já tão ouvida, apesar de tão nova, e que talvez nem venha a perdurar, pois depende do Zeitgeist. Isso justifica o texto final, que diz: «Novo Uno. Lindo sempre. Avançado sempre. Novo sempre.».
Humor não tão sutil é utilizado no comercial[14] do Novo Palio, também de 2012. Recriando várias situações em que uma esposa invejosa diz ao marido que o vizinho tem algo melhor, tanto na era atual, como na Idade Média, e até na Idade da Pedra, o comercial se encerra com o locutor dizendo: «O mundo não mudou tanto assim. Mas o Palio mudou, e como mudou... Novo Palio. O carro do ano.». Mais um exemplo da insistência na identificação com o consumidor e sua cultura, sem abandonar a ideia de inovação.
A ideia de identificação com a cultura local está tão presente nos comerciais da fabricante, que sua filial brasileira fez toda uma campanha publicitária satirizando os concorrentes que enfatizam o estrangeiro. Foi a campanha[15] do Freemont 2012, que tem cinco spots derivados de um spot chave, que diz:
Para anunciar SUV, tem gente que usa: um locutor que fala assim [locução com voz grave e aveludada], estradas que não existem no Brasil, superlativos, o melhor, o maior, luxo, vento na relva, nossa! Adoro a minha voz! Já a Fiat usa o Novo Freemont nas estradas que você roda. Não precisa rebuscar, né?»,
com óbvia opção por um linguajar menos rebuscado e mais cotidiano. Os outros spots mostram como até objetos corriqueiros, como uma joelheira, uma maçaneta de porta, um saca-rolhas e uma caneta podem ser “glamourizados” para serem bem mais do que são, obviamente induzindo o consumidor a pensar que as propagandas dos concorrentes são enganosas.
Esse spot é uma transmutação eficaz do comercial[16] italiano do Punto 2012, que faz referências diretas a alguns concorrentes. Trata-se da peça publicitária na qual se mostram as duas paixões dos italianos: mulheres bonitas e belos carros. O texto diz: «Questa è la mini che amiamo. Questa è l’auto che ci piace. Questo è il polo che amiamo. Questa è l’auto che ci piace. Questa è la fiesta che amiamo. Questa è l’auto che ci piace...» (= Esta é a mini que amamos. Este é o carro que nos agrada. Este é o polo que amamos. Este é o carro que nos agrada. Esta é a festa que amamos. Este é o carro que nos agrada...). Percebe-se logo a intenção de criticar três concorrentes: o Mini Cooper, o Volkswagen Polo e o Ford Fiesta. Mas talvez o caráter mais agressivo desta propaganda esteja em sua significação da mulher como puro objeto de desejo. Muito certamente o mesmo comercial não teria sucesso no Brasil, onde feministas obrigaram uma indústria de lingerie a retirar seus comerciais do ar, porque retratavam a modelo Giselle Bündchen em várias situações de subserviência.
Outra ideia que povoa os comerciais da Fiat, desde 1976, quando foi ao ar o lançamento[17] do Fiat 147 com o lema «Enfim, um carrão pequeno» é de que, em se tratando de carro, nem sempre o maior é o melhor. No comercial de 76, figurava um típico jeca (localização), descrevendo com propriedade as qualidades do freio do novo modelo. Ao retomar a ideia do pequeno grande carro, a fábrica brasileira encomendou alguns comerciais[18] para o Fiat 500, nos quais atuavam Ricardo Macchi (ator conhecido no Brasil por seu tamanho e por sua interpretação caricata) e Dustin Hoffman (famoso mundialmente por ser um grande ator de pequena estatura). O texto diz: «Para ser um atorzão, não precisa ser grande. Nem para ser um carrão.».
Mas os dois exemplos mais fortes da tradução intersemiótica do compromisso da Fiat com a cultura local são encontrados em comerciais de 1976 e de 2012. O de 1976[19] foi feito para o lançamento do Fiat 147 brasileiro. Nele aparece a escadaria da Penha, no Rio de Janeiro, local conhecido por ser palco de pagamentos de promessas religiosas por milhões de brasileiros. O carro é mostrado fazendo o que os brasileiros estão acostumados a fazer, quando pagam suas promessas: subir e descer os 365 degraus dessa escadaria. Claro que o hábito é fazê-lo ajoelhado, mas o carro o fez com o simples auxílio de duas pequenas rampas, e o feito de consegui-lo sem danificar a suspensão é comemorado no spot, em frente a dezenas de observadores. Evidente que este comercial não faria qualquer sucesso fora do Brasil, mas obteve um sucesso local considerável.
Por fim, o segundo comercial[20], que é o do Panda 2012, modelo ainda não comercializado no Brasil. Talvez seja o comercial mais engajado culturalmente jamais feito pela Fiat. É uma resposta aos tempos difíceis pelos quais está passando a Europa, mas especialmente a Itália. Trata-se de um spot longo, de 90 segundos, que procura traduzir intersemioticamente todo o compromisso com a cultura da Itália que a Fiat tenciona veicular. Um locutor de voz serena e grave, quase como um pai falando ao filho, discorre lentamente sobre as várias Itálias que existem, e que este é o momento de decidir qual delas se sobressairá, ao passo que se mostram imagens de uma Itália laboriosa, que constrói e inova. O lema é «Le cose che costruiamo ci rendono ciò che siamo» (= As coisas que construímos fazem de nós o que somos). Segue uma transcrição do texto:
Ma quante Italie conosciamo? Quella dell’arte, quella della grande inventiva, quella del talento costruttivo, quella del paese pittoresco, quella dei giovani che cercano un futuro? O quella capace di grandi imprese industriali? Noi possiamo scegliere quale Italia essere. È il momento di decidere se essere noi stessi o accontentarci dell’immagine che ci vogliono dare. Questo momento è quello di ripartire. Ripartire nell’unico modo che conosciamo: con il nostro lavoro e mettendoci alla prova. Perché in Italia, ogni giorno, c’è qualcuno che si sveglia e mette nel suo lavoro il talento, la passione, la creatività, ma soprattutto la voglia di costruire uma cosa ben fatta. Le cose che costruiamo ci rendono ciò che siamo...
[= Mas quantas Itálias conhecemos? Aquela da arte, aquela da grande criatividade, aquela do talento construtivo, aquela do país pitoresco, aquela dos jovens em busca do futuro? Ou aquela capaz de grandes projetos industriais? Nós podemos escolher qual Itália sermos. É o momento de decidirmos se seremos nós mesmos ou nos contentarmos com a imagem que nos querem dar. Este é o momento de repartir. Repartir da única maneira que conhecemos: com o nosso trabalho e nos colocando à prova. Porque na Itália, a cada dia, há alguém que se desperta e coloca em seu trabalho o talento, a paixão, a criatividade, mas sobretudo a vontade de construir algo bem feito. As coisas que construímos fazem de nós o que somos...].
Aqui a fabricante explicita verbalmente os elementos conceituais que busca retratar em seus comerciais: talento, paixão, criatividade, inventividade, inovação e um jeito característico de fazer publicidade bem acabada.
Com isso cremos ter demonstrado que a tradução dos comerciais da Fiat no Brasil não se deu jamais de forma literal, mas sempre de forma a transmitir a essência impactante dos comerciais italianos da marca, com ganhos na transmutação.
Conclusão
Parece claro haver uma necessidade de aprofundamento nas pesquisas sobre tradução intersemiótica, para abarcar traduções por assim dizer conceituais em comerciais televisivos, ou seja, nas quais o que resta traduzido são apenas os valores norteadores dos comerciais originais.
No caso em tela, procuramos demonstrar que o que orientou o trabalho de transmutação feito pelos publicitários brasileiros foi a imagem institucional do fabricante do produto, além das características com mais poder de atração do próprio produto.
Deste modo, demonstrou-se que os comerciais da Fiat no Brasil, embora não guardem semelhança de forma ou conteúdo com seus correspondentes na Itália, são uma tradução, no sentido mais amplo, dos valores divulgados nos spots originais, quais sejam: inovação, identidade cultural com o país alvo e criatividade. Tais valores correspondem aos que a Fiat deseja associados à sua marca, como patente em seu comercial de tom editorial de 2012 para o Panda.
Por fim, resta dizer que apenas o conceito de tradução intersemiótica (Jakobson 1979) permite o perfeito entendimento da maneira como tal tradução conceitual se dá. Fica bem delineado o fato de que, mesmo onde há tradução interlingual nos comerciais, com textos em língua escrita ou falada presentes tanto no original quanto no produto traduzido, tal tradução interlingual, no contexto das traduções intersemióticas, nunca apresenta correspondência direta entre a língua base e a língua alvo, seja por motivos linguísticos, como jogos de palavras ou conotações humorísticas, seja por fatores intersemióticos por si, determinados pela escolha de componentes textuais que possam atingir efeito análogo ao do original, mudando-se a estrutura do meio.
Sabemos não ser esta a única forma possível de se traduzir comerciais televisivos, mas estamos convencidos de que é a mais eficaz.
Bibliografia
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Hirashima, C. K. 2005. A Importância da Tradução Intersemiótica para os Estudos Tradutológicos. Revista Todas as Letras, v. 7, n. 2, 82-89
Jakobson, R. 1979. Aspectos linguísticos da tradução. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix/EdUSP, 63-72 [Tradução da versão original em inglês (1959) de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes.]
Plaza, J. 2001. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva.
Plaza, J. e Tavares, M. 1998. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec.
Serianni, L. e Castelvecchi, A. 1988. Grammatica italiana: italiano comune e lingua letteraria. Suoni, forme, costrutti. Torino: UTET
Sitografia
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http://www.youtube.com/watch?v=nMMPLsw8whg&feature=related
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http://www.youtube.com/watch?v=9iZwVZACogA
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http://www.youtube.com/watch?v=gjOJw9ddh3A
http://www.youtube.com/watch?v=3PHLlMWhlPg
http://www.youtube.com/watch?v=ZlhVMwlQm4E
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http://www.youtube.com/watch?NR=1&feature=endscreen&v=GBHJMgDbsVE
http://www.youtube.com/watch?v=3jpdFsFe9kI
http://www.youtube.com/watch?v=devOI5sFDJk
http://www.youtube.com/watch?v=cljJu6UNPV4
http://www.youtube.com/watch?v=heCVR7kKyRw
(Todos os vídeos com último acesso em 25 jan. 2012)
[1] Enciclopédia linguística disponível em versão impressa e virtual. Cf. www.ethnologue.com/show_language.asp?code=por
[2] Cf. www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm
[3] http://www.youtube.com/watch?v=nMMPLsw8whg&feature=related
[4] http://www.youtube.com/watch?v=hgiOJ0H5vDM
[5] http://www.youtube.com/watch?v=Qu3QlxN5jxQ
[6] http://www.youtube.com/watch?v=9iZwVZACogA
[7] http://www.youtube.com/watch?v=SCQ46A8KK-8
[8] http://www.youtube.com/watch?v=9A8hR0rejO0
[9] http://www.youtube.com/watch?v=uubyf40_j9Q
[10] http://www.youtube.com/watch?v=gjOJw9ddh3A
[11] http://www.youtube.com/watch?v=3PHLlMWhlPg
[12] http://www.youtube.com/watch?v=ZlhVMwlQm4E
[13] http://www.youtube.com/watch?v=TK9UAdKNW9M
[14] http://www.youtube.com/watch?v=UzxGYvj-3Bs
[15] http://www.youtube.com/watch?v=tBjRdZXtvS8&feature=player_embedded
[16] http://www.youtube.com/watch?NR=1&feature=endscreen&v=GBHJMgDbsVE
[17] http://www.youtube.com/watch?v=3jpdFsFe9kI
[18] http://www.youtube.com/watch?v=devOI5sFDJk
[19] http://www.youtube.com/watch?v=cljJu6UNPV4
[20] http://www.youtube.com/watch?v=heCVR7kKyRw
Alberto Emerson Werneck Dias
Mestre em Linguística – Universidade de Brasília (Brasil)
E-mail: [email protected]
Dr. Roberto Pigro
Dr. em Ciências da Antiguidade – Universidade de Udine (Itália)
E-mail: [email protected]
Resumo: Há ainda poucos estudos sobre tradução intersemiótica, especialmente do e para o português. Este trabalho analisa a tradução intersemiótica ou transmutação de comerciais televisivos da fábrica de automóveis italiana Fiat no Brasil, ao longo de 36 anos, verificando o que foi conservado dos originais italianos nos produtos finais, e o que se ganhou com a transposição escolhida. Verifica-se que os publicitários fizeram opções ao traduzir que foram determinadas tanto por fatores linguísticos como semióticos. A análise aponta para a possível existência de um novo tipo de tradução, a conceitual.
Palavras-chave: Tradução intersemiótica; italiano; português; transmutação; tradução conceitual
Abstract: There are still few studies on intersemiotic translations, especially from and into Portuguese. This work analyzes the intersemiotic translation or transmutation of television advertisements of the Italian car maker Fiat in Brazil, in a span of 36 years, verifying what was kept from the Italian originals in the final products, and what was gained with the chosen transposition. It is shown that the advertisers made options in translating that were determined both by linguistic and semiotic issues. The analysis points to the possible existence of a new kind of translation, the conceptual one.
Keywords: Intersemiotic translation; Italian; Portuguese; transmutation; conceptual translation
Introdução
Embora já se tenha avançado consideravelmente nos estudos tradutológicos a partir da introdução do conceito de tradução intersemiótica, com Roman Jakobson (1979: 63), resta ainda muito campo a ser explorado no âmbito das produções artísticas multimediáticas, como é o caso da publicidade televisiva e na internet. Mais ainda se oferece à exploração acadêmica, se considerarmos a recentidade de tais estudos no contexto do Brasil e da língua portuguesa.
Aliás, causa certo espanto que haja comparativamente poucos estudos sobre tradução para ou a partir de língua portuguesa, se se observam os números do Ethnologue[1], que aponta haver atualmente cerca de 178 milhões de falantes do português no mundo. Lembra-nos o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com seus dados do Censo 2010[2], que os números devem ser bem mais altos, uma vez que, só no Brasil, a população já soma pouco menos que 190 milhões.
Por tradução intersemiótica ou “transmutação” entende-se:
aquele tipo de tradução que ‘consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais’, ou ‘de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, o cinema ou a pintura’, ou vice versa. (Plaza 2001: xi)
Este estudo se apresenta como possível contribuição ao estudo das traduções intersemióticas, ao suscitar uma necessidade de aprofundamento nas pesquisas que trabalhem a tradução não necessariamente de textos verbais (embora possa envolvê-la), mas de textos intersemióticos, que se apresentem na forma de comerciais televisivos, nos quais não se encontra correspondência direta entre os discursos visual, verbal e auditivo, embora haja coerência de propósitos e de significação. Para tanto, abordaremos comerciais televisivos (também veiculados na internet, em sua maioria), produzidos tanto na Itália quanto no Brasil, ao longo de mais de trinta anos, para divulgação de modelos emblemáticos de automóveis de passeio fabricados pela Fiat Automóveis.
Se a Roman Jakobson cabe o mérito da distinção e definição da tradução intersemiótica como fenômeno, a Julio Plaza cabe o mérito da fundamentação e o desenvolvimento de uma teoria sobre esse fenômeno aplicado ao campo das artes plásticas. A teoria de Julio Plaza (2001, p.xii) enfoca a tradução intersemiótica como “forma de arte” e “prática artística”, como ele mesmo definiu. (Hirashima 2005: 83)
O principal objetivo, portanto, do presente estudo é demonstrar como tais comerciais, embora não tenham correspondência direta entre um spot e outro, ao longo dos anos, contribuíram para veicular artisticamente uma imagem do fabricante de identificação com a cultura do país alvo e compromisso com a inovação e criatividade, recriando totalmente comerciais televisivos, ao buscar atender aos anseios de consumo de mercados tão parecidos e tão díspares, à vez, como a Itália e o Brasil.
Talvez esse mesmo compromisso com a inovação e inventividade, tão bem retratado nos comerciais italianos para o Fiat Uno dos anos 80, com o slogan «Tutto il resto è relativo» (= Tudo o mais é relativo), tenha determinado a opção do fabricante italiano em não fazer transposições literais dos textos de divulgação ou mesmo dos slogans de nenhum de seus veículos comercializados no Brasil, provavelmente considerando que uma fábrica filial já havia se estabelecido no Brasil desde 1973, e que os produtos Fiat já haviam sido assimilados pelo mercado brasileiro como parte também da cultura brasileira.
Interessante notar que produtos italianos mundialmente reconhecidos como tal sempre tiveram boa aceitação no Brasil, mas somente após uma “aclimatização”, ou “localização” de suas características (veja-se o caso da pizza e do macarrão, “abrasileirados” em seu sabor e preparo, e da música popular italiana, que atualmente só é amplamente consumida pelos brasileiros em versões para o português).
É esta identificação cultural com o público brasileiro, representada nos esforços de recriar o clima de inovação dos comerciais italianos, ao serem transpostos para o Brasil, que será examinada neste estudo, ao nos debruçarmos sobre o resultado dos esforços dos publicitários brasileiros em traduzir mais que cada comercial, o conceito geral que desejavam associado à imagem institucional da Fiat.
Português e italiano: tão próximas, tão distantes
Desnecessário relembrar a proximidade entre os idiomas português e italiano, vez que ambos neolatinos. No entanto, tal proximidade, ao passo que facilita a correspondência textual em muitos casos, traz consigo armadilhas de natureza tanto linguística como extralinguística, quando contextos não são prontamente tradutíveis, ameaçando a possibilidade de tradução do comercial como um todo.
O primeiro obstáculo se dá, em nosso caso, pelo fato de, no Brasil, os termos o carro, o automóvel, o veículo terem sempre a associação principal com características masculinas, como força, poder e liderança, quando, na Itália, l’auto, l’automobile, la macchina, la vettura, l’autovettura (femininos) são associadas a propriedades mais femininas, como a atratividade.
Claro que se deve levar em conta a mudança conceitual que vem ocorrendo no mundo, e em especial no Brasil, com relação à significação do masculino e do feminino, não menos pelo fato de o Brasil haver recém eleito sua primeira Presidente da República. No entanto, levará ainda certo tempo até que se associe um carro no Brasil ao universo feminino. Veremos mais adiante como esta associação com as mulheres funciona muito bem em um comercial do Punto na Itália, mas não funcionaria tão bem no Brasil.
Fato é que, tivesse a Fiat decidido por traduzir a maioria de seus comerciais de forma literal, ou próxima disso, no Brasil, seu apelo comercial não seria o mesmo e, muito provavelmente, seu sucesso de vendas tampouco.
Queremos defender que foi exatamente o uso pensado da “transmutação”, ou tradução intersemiótica (Jakobson 1979: 64), nos comerciais brasileiros da Fiat que determinaram o sucesso das campanhas do fabricante italiano no mercado do Brasil.
Os comerciais originais da Fiat veiculados na Itália e aqui estudados guardam tamanha aderência significativa com a cultura italiana, que seria inócua qualquer tentativa de tradução literal. Ou seja, o comercial do Fiat Punto no Brasil, ainda que feito pela mesma agência publicitária (como no caso da agência Leo Burnett), não guarda semelhança textual com seu original italiano, mas ganha em muito com sua “adaptação” para o gosto do brasileiro.
Tradução sem correspondência direta
Evidente está que, numa análise intersemiótica, devemos considerar pelo menos três planos de significação: o do visual, o da trilha sonora, e o das falas ou textos. Para isso, descreveremos brevemente os comerciais italianos escolhidos e compara-los-emos com outros spots semelhantes veiculados no Brasil.
Reforce-se aqui a ideia que queremos defender, de que a tradução que se está analisando não é a de um produto textual versus outro produto textual, sim da própria produção textual, ou seja, analisa-se aqui a tradução do conceito ‘carro Fiat’ como produto vendável, desejável e inovador. O que se vende é o novo, não o carro, mas este lhe vem como acessório, ou prêmio, pelo associar-se do consumidor com a ideia de inovação.
A dificuldade em traduzir comerciais televisivos não é tanto linguística como é semiótica. Afinal, Jakobson nos lembra que «toda experiência cognitiva e sua classificação pode ser expressa em qualquer língua existente» (Jakobson 1979: 66), embora para garantir maior fidelidade, seja preciso maior quantidade de informação verbal. Ora, se no universo da publicidade televisiva tempo é dinheiro, é imperioso dizer mais em menos tempo. Explicações dos conteúdos humorísticos, ou de jogos de palavras, ou até de referências intertextuais que se usassem nos comerciais brasileiros, não só matariam o espírito dos comerciais italianos, como inviabilizariam sua veiculação em horário nobre na TV brasileira.
Portanto, é de se aplaudir a iniciativa dos publicitários brasileiros contratados pela Fiat, que nem mesmo o visual ou as músicas dos spots originais aproveitaram, literalmente recriando peças publicitárias que conservassem a ideia de inovação e exclusividade, além da própria identificação com o universo cultural local.
É de todos sabida a ineficácia da tentativa de se transpor literalmente até mesmo o nome dos automóveis, sendo o exemplo mais gritante o caso do Ford Nova, que se tornou um fiasco nos países de língua espanhola, por ser associado à expressão no va (= não funciona). Outro exemplo é o do Fiat Ritmo, que antes de ser comercializado nas regiões dos Estados Unidos em que se fala espanhol mudou de nome para Strada, por ser o termo ritmo associado ao termo local para ‘período menstrual’.
Daí ser acertada a opção da Fiat por traduzir o espírito, mas não o conteúdo textual de seus comerciais italianos no Brasil. É a tradução intersemiótica que assegura produzir efeitos análogos com meios diferentes, como aponta Paul Valéry (cf. D’Angelo 2004: 136).
Análise dos comerciais italianos da Fiat e suas transmutações
Assim, passamos agora a analisar alguns comerciais italianos da Fiat e seus contrapontos brasileiros, apontando o que se ganhou na tradução, no sentido mais amplo. Ressalte-se que, em alguns casos, há carros que são comercializados apenas pela fábrica brasileira da Fiat, como o Novo Uno. E por isso foram escolhidos somente comerciais brasileiros de lançamento de determinados modelos no Brasil, em contraposição a comerciais italianos que, ainda que não fossem de lançamento, fossem marcos da inovação associada aos modelos em questão.
Primeiro analisemos um comercial[3] da campanha «Uno, che passione!» (= Uno, que paixão!). O inovador, neste caso, é a publicidade mostrar um mesmo carro sendo utilizado por diversas pessoas aleatórias em seguida, como para significar que o Uno serve para todos indistintamente. Note-se que, no spot, as pessoas se apoderam instantaneamente do carro, sem estranhamentos ou hesitação, como se fosse seu próprio carro, ou seja, veiculando a ideia de familiaridade. Visto em retrospectiva, talvez não se perceba tanto o impacto deste comercial, mas o fato é que a campanha lançou no discurso cotidiano dos italianos a expressão che passione, e, para o mais latino dentre os povos latinos, nada como a exacerbação do emocional, do apaixonado, do amor. Assim, qualquer tema em que alguém se envolvesse um pouco mais que o normal, como no futebol, ou em uma discussão de bar, alguém logo diria: «Che passione!».
Vejamos agora o impacto do comercial[4] veiculado para o modelo Novo Uno, fabricado apenas no Brasil. O spot é baseado na simplicidade auditiva, com apenas uma melodia instrumental de fundo, sem muita personalidade, mas um visual agressivo, com muitas cores e formas, em um cenário que vai se preenchendo à medida que várias pessoas chegam ao local em modelos Novo Uno de diversas cores e tipos, e vão montando uma cidade inteiramente nova, a partir de objetos que vão retirando de seus carros. A única fala do comercial é «Novo Uno. Novo tudo.», acompanhada do respectivo texto escrito. Muito explícita a ênfase no conceito de inovação.
O parco uso do verbal neste comercial brasileiro de 2011 é um contraponto ao verboso comercial[5] do Uno veiculado na Itália em 1983, com o já aludido lema «Tutto il resto è relativo», que reforça a ideia de exclusividade, absolutismo. Naquele comercial, o texto é também inovador, ao caricaturar as qualidades do modelo positivamente, pelo uso do sufixo -osa em adjetivos que não o necessitam, tema explorado pelo linguista Luca Serianni (1988: 545). Deste modo, começa o texto com «È comodosa. È sciccosa. È risparmiosa. È scattosa» (= É confortavelosa. É chicosa. É economicosa. É rapidosa), para em seguida afirmar que o automóvel é confortável, elegante, econômico, brilhante, potente e entusiasmante «come nessuno» (= como nenhum outro), mas fazendo um jogo de palavras intradutível, no qual as últimas sílabas de nessuno coincidem com as primeiras duas de outras vozes dizendo «Uno, è una Fiat» (= Uno, é um Fiat). Para completar o impacto, o visual fica por conta de uma animação feita pelo renomado desenhista Giorgio Forattini, com clara intenção de comunhão com os jovens e com a cultura italiana.
Em 1984, a Fiat brasileira lança o modelo Uno localmente, com um comercial[6] mais enxuto, no qual uma música suave ao fundo é acompanhada de vozes femininas cantando «Fiat Uno» diversas vezes, ao passo que se mostram várias imagens de grandes inventos, como o fogo, a roda, a lâmpada, o telefone e o clipe, para logo adiante terminar com a imagem do carro, acompanhada da fala «De tempos em tempos, o homem produz uma obra de gênio. Fiat Uno.», e do texto «Uno! Fiat. Com a ousadia dos gênios». Deve-se destacar o acerto da manutenção do nome Uno no Brasil, pois tem o mesmo impacto da inclusão do ponto de exclamação, e a ideia de que o modelo é único, além de sugerir ser o primeiro na categoria. Não se descarta também a associação aos jovens, por evocar um popular jogo do mesmo nome.
Para o modelo Bravo, em 2007, a fábrica italiana produziu um comercial[7] também inovador, no sentido de ser a própria música tema quem se encarrega de descrever o produto. É utilizada a canção Meravigliosa creatura, de Gianna Nannini, famosa em toda a Itália. A letra sugere bravura e desbravamento de obstáculos, com o texto «Molti mari e fiumi attraverserò, dentro la tua terra mi ritroverai, turbini e tempeste io cavalcherò, volerò tra i fulmini per averti, meravigliosa creatura...» (= Muitos mares e rios atravessarei, dentro da tua terra me encontrarás, torpedos e tempestades cavalgarei, voarei por entre os raios para te ter, maravilhosa criatura...). Não se pode esquecer o slogan adotado para este comercial, que foi «Bravo. Made in Fiat». Isso porque os publicitários mostraram mais uma vez uma identificação da marca com a cultura italiana, que prestigia seus cantores populares, mas valoriza também as influências do estrangeiro, o que se mostra na opção pelo uso do inglês. Verdade é que a expressão de uso corrente na Itália é made in Italy, como fruto do orgulho da exportação, mas o fabricante soube utilizar esse orgulho para associar diretamente a imagem da Fiat à da Itália. No Brasil, o uso do inglês na publicidade é muitas vezes restringido até por leis, como a de proteção ao patrimônio linguístico.
Vemos a mesma preocupação com a identidade cultural no comercial[8] do Bravo de 2010. Aqui, com um visual impregnado por números relativos às qualidades do carro, ouvimos, desde o início, um trecho imponente da obra Verão, das Quatro Estações de Vivaldi. A intenção é claramente dizer que os números falam por si, mas, ao mesmo tempo, de identificar a marca Bravo com a sofisticação da música clássica, e a marca Fiat com a cultura italiana, vivificando a obra de um de seus maiores expoentes. O lema aqui é «I numeri non sono mai stati così belli» (= Os números nunca foram tão belos). Há também uma ênfase na beleza das formas do carro, pelas imagens e pela associação com a música clássica.
Ao ser lançado no Brasil, o Bravo ganhou uma versão brasileira do comercial[9], que busca o impacto dos números na atmosfera digital do texto, que vai se desfilando em meio aos detalhes tecnológicos ressaltados pelo visual. Mas a música clássica não está tão arraigada no Brasil como na Itália, e a identificação com o público alvo fica por conta da música eletrônica escolhida, que evoca as noitadas que embalam grande parte dos jovens brasileiros. Além disso, o jogo de palavras agora é dirigido ao público do Brasil, mais acostumado a associar a palavra bravo com braveza, já que o texto começa com: «Aproveite enquanto ele está calminho...». O lema aqui é «A bravura está de volta.».
No lançamento[10] do Punto na Itália, em 2005, volta o fabricante a apostar no uso escasso do verbal para vender o produto. A inovação está na ironia do uso de uma canção que se chama Senza parole (= Sem palavras) para dizer com a letra a mensagem do comercial. Trata-se de um rock de Vasco Rossi, famosíssimo na Itália, mas desconhecido no Brasil. A letra diz: «E ho guardato dentro un’emozione / e ci ho visto dentro tanto amore / Che ho capito perché non si comanda al cuore. / E va bene così... Senza parole... Senza parole...» (= E guardei dentro uma emoção / E já vi dentro tanto amor / Que entendi porque não se comanda o coração / E assim está bem... Sem palavras... Sem palavras...). Novamente grande identidade cultural com o público alvo, escolhendo uma música muito conhecida dos jovens italianos, e com o ritmo provocante do rock. Que não se esqueça do jogo de palavras que não se traduz diretamente ao português, criado com o próprio nome do modelo, Punto, que é ‘ponto final’ em italiano. Vê-se aqui de novo a intenção de passar a ideia de exclusividade. O lema diz «È arrivata. Punto.» (= Chegou. Punto [Ponto final]), como a dizer que nada mais precisa ser dito, ou que nenhum outro carro precisa ser feito.
Já no comercial[11] de 2007 para o lançamento do Punto no Brasil, a fábrica faz um apelo ao imaginário dos jovens brasileiros. Primeiro, escolhendo uma música de ritmo jovem em inglês (Shut your eyes), mas de autoria de um desconhecido grupo da Suécia, os Shout Out Louds. Depois, propondo uma viagem ao inconsciente, mostrando um jovem que compra uma bola de cristal com uma moça dentro, e depois vê essa moça correndo pelas ruas, envolta em uma redoma, até que ele freia bruscamente, e a bola e a redoma se partem ao mesmo tempo. E o locutor pergunta: «Você faz as coisas acontecerem? Fiat Punto. Você no comando.». A inovação na escolha da música se mostrou acertada, pois a música caiu no gosto da juventude brasileira, e os comerciais do Punto estiveram durante muitos dias entre os vídeos mais acessados na internet brasileira. A perda do jogo de palavras foi bem compensada pela ideia de que o absoluto e exclusivo é o próprio consumidor («Você no comando»). A música Shut your eyes foi reaproveitada em outros spots da campanha, e até reestilizada e regravada pelos produtores, para maior impacto, como no comercial[12] da heroína dos quadrinhos, no qual um rapaz vê uma ilustração de uma garota em uma banca de revistas, e ela se materializa para viver uma aventura com ele. Aqui o lema é: «Você realmente vive cada dia? Fiat Punto. Você no comando.».
Aliás, esta tendência de direcionamento da publicidade da Fiat para os jovens fica bem marcada em outro comercial[13] de 2012 para o Novo Uno. Aproveitando a onda de sucesso que levou o hit do momento no Brasil a viajar para quase todos os países, o fabricante faz um comercial bem colorido, bastante kitsch, bem ao gosto das multidões que apreciam o chamado sertanejo universitário, e convida o próprio cantor Michel Teló (lançador do ritmo mundialmente) para aparecer na propaganda, ao som da sua canção mais conhecida, a tão controversa «Ai, se eu te pego!». O texto até imita o estilo dos caraoquês, com uma pequena bola acompanhando as palavras, no ritmo da música. Mas para fugir da controvérsia, o texto do comercial avisa que «Pode colocar até o sucesso do momento. O Novo Uno vai continuar sempre descolado.». Há um jogo de palavras sutil, pois o termo descolado pode significar ao mesmo tempo jovial e sem apegos, talvez como um pedido de desculpas, uma licença para usar uma música já tão ouvida, apesar de tão nova, e que talvez nem venha a perdurar, pois depende do Zeitgeist. Isso justifica o texto final, que diz: «Novo Uno. Lindo sempre. Avançado sempre. Novo sempre.».
Humor não tão sutil é utilizado no comercial[14] do Novo Palio, também de 2012. Recriando várias situações em que uma esposa invejosa diz ao marido que o vizinho tem algo melhor, tanto na era atual, como na Idade Média, e até na Idade da Pedra, o comercial se encerra com o locutor dizendo: «O mundo não mudou tanto assim. Mas o Palio mudou, e como mudou... Novo Palio. O carro do ano.». Mais um exemplo da insistência na identificação com o consumidor e sua cultura, sem abandonar a ideia de inovação.
A ideia de identificação com a cultura local está tão presente nos comerciais da fabricante, que sua filial brasileira fez toda uma campanha publicitária satirizando os concorrentes que enfatizam o estrangeiro. Foi a campanha[15] do Freemont 2012, que tem cinco spots derivados de um spot chave, que diz:
Para anunciar SUV, tem gente que usa: um locutor que fala assim [locução com voz grave e aveludada], estradas que não existem no Brasil, superlativos, o melhor, o maior, luxo, vento na relva, nossa! Adoro a minha voz! Já a Fiat usa o Novo Freemont nas estradas que você roda. Não precisa rebuscar, né?»,
com óbvia opção por um linguajar menos rebuscado e mais cotidiano. Os outros spots mostram como até objetos corriqueiros, como uma joelheira, uma maçaneta de porta, um saca-rolhas e uma caneta podem ser “glamourizados” para serem bem mais do que são, obviamente induzindo o consumidor a pensar que as propagandas dos concorrentes são enganosas.
Esse spot é uma transmutação eficaz do comercial[16] italiano do Punto 2012, que faz referências diretas a alguns concorrentes. Trata-se da peça publicitária na qual se mostram as duas paixões dos italianos: mulheres bonitas e belos carros. O texto diz: «Questa è la mini che amiamo. Questa è l’auto che ci piace. Questo è il polo che amiamo. Questa è l’auto che ci piace. Questa è la fiesta che amiamo. Questa è l’auto che ci piace...» (= Esta é a mini que amamos. Este é o carro que nos agrada. Este é o polo que amamos. Este é o carro que nos agrada. Esta é a festa que amamos. Este é o carro que nos agrada...). Percebe-se logo a intenção de criticar três concorrentes: o Mini Cooper, o Volkswagen Polo e o Ford Fiesta. Mas talvez o caráter mais agressivo desta propaganda esteja em sua significação da mulher como puro objeto de desejo. Muito certamente o mesmo comercial não teria sucesso no Brasil, onde feministas obrigaram uma indústria de lingerie a retirar seus comerciais do ar, porque retratavam a modelo Giselle Bündchen em várias situações de subserviência.
Outra ideia que povoa os comerciais da Fiat, desde 1976, quando foi ao ar o lançamento[17] do Fiat 147 com o lema «Enfim, um carrão pequeno» é de que, em se tratando de carro, nem sempre o maior é o melhor. No comercial de 76, figurava um típico jeca (localização), descrevendo com propriedade as qualidades do freio do novo modelo. Ao retomar a ideia do pequeno grande carro, a fábrica brasileira encomendou alguns comerciais[18] para o Fiat 500, nos quais atuavam Ricardo Macchi (ator conhecido no Brasil por seu tamanho e por sua interpretação caricata) e Dustin Hoffman (famoso mundialmente por ser um grande ator de pequena estatura). O texto diz: «Para ser um atorzão, não precisa ser grande. Nem para ser um carrão.».
Mas os dois exemplos mais fortes da tradução intersemiótica do compromisso da Fiat com a cultura local são encontrados em comerciais de 1976 e de 2012. O de 1976[19] foi feito para o lançamento do Fiat 147 brasileiro. Nele aparece a escadaria da Penha, no Rio de Janeiro, local conhecido por ser palco de pagamentos de promessas religiosas por milhões de brasileiros. O carro é mostrado fazendo o que os brasileiros estão acostumados a fazer, quando pagam suas promessas: subir e descer os 365 degraus dessa escadaria. Claro que o hábito é fazê-lo ajoelhado, mas o carro o fez com o simples auxílio de duas pequenas rampas, e o feito de consegui-lo sem danificar a suspensão é comemorado no spot, em frente a dezenas de observadores. Evidente que este comercial não faria qualquer sucesso fora do Brasil, mas obteve um sucesso local considerável.
Por fim, o segundo comercial[20], que é o do Panda 2012, modelo ainda não comercializado no Brasil. Talvez seja o comercial mais engajado culturalmente jamais feito pela Fiat. É uma resposta aos tempos difíceis pelos quais está passando a Europa, mas especialmente a Itália. Trata-se de um spot longo, de 90 segundos, que procura traduzir intersemioticamente todo o compromisso com a cultura da Itália que a Fiat tenciona veicular. Um locutor de voz serena e grave, quase como um pai falando ao filho, discorre lentamente sobre as várias Itálias que existem, e que este é o momento de decidir qual delas se sobressairá, ao passo que se mostram imagens de uma Itália laboriosa, que constrói e inova. O lema é «Le cose che costruiamo ci rendono ciò che siamo» (= As coisas que construímos fazem de nós o que somos). Segue uma transcrição do texto:
Ma quante Italie conosciamo? Quella dell’arte, quella della grande inventiva, quella del talento costruttivo, quella del paese pittoresco, quella dei giovani che cercano un futuro? O quella capace di grandi imprese industriali? Noi possiamo scegliere quale Italia essere. È il momento di decidere se essere noi stessi o accontentarci dell’immagine che ci vogliono dare. Questo momento è quello di ripartire. Ripartire nell’unico modo che conosciamo: con il nostro lavoro e mettendoci alla prova. Perché in Italia, ogni giorno, c’è qualcuno che si sveglia e mette nel suo lavoro il talento, la passione, la creatività, ma soprattutto la voglia di costruire uma cosa ben fatta. Le cose che costruiamo ci rendono ciò che siamo...
[= Mas quantas Itálias conhecemos? Aquela da arte, aquela da grande criatividade, aquela do talento construtivo, aquela do país pitoresco, aquela dos jovens em busca do futuro? Ou aquela capaz de grandes projetos industriais? Nós podemos escolher qual Itália sermos. É o momento de decidirmos se seremos nós mesmos ou nos contentarmos com a imagem que nos querem dar. Este é o momento de repartir. Repartir da única maneira que conhecemos: com o nosso trabalho e nos colocando à prova. Porque na Itália, a cada dia, há alguém que se desperta e coloca em seu trabalho o talento, a paixão, a criatividade, mas sobretudo a vontade de construir algo bem feito. As coisas que construímos fazem de nós o que somos...].
Aqui a fabricante explicita verbalmente os elementos conceituais que busca retratar em seus comerciais: talento, paixão, criatividade, inventividade, inovação e um jeito característico de fazer publicidade bem acabada.
Com isso cremos ter demonstrado que a tradução dos comerciais da Fiat no Brasil não se deu jamais de forma literal, mas sempre de forma a transmitir a essência impactante dos comerciais italianos da marca, com ganhos na transmutação.
Conclusão
Parece claro haver uma necessidade de aprofundamento nas pesquisas sobre tradução intersemiótica, para abarcar traduções por assim dizer conceituais em comerciais televisivos, ou seja, nas quais o que resta traduzido são apenas os valores norteadores dos comerciais originais.
No caso em tela, procuramos demonstrar que o que orientou o trabalho de transmutação feito pelos publicitários brasileiros foi a imagem institucional do fabricante do produto, além das características com mais poder de atração do próprio produto.
Deste modo, demonstrou-se que os comerciais da Fiat no Brasil, embora não guardem semelhança de forma ou conteúdo com seus correspondentes na Itália, são uma tradução, no sentido mais amplo, dos valores divulgados nos spots originais, quais sejam: inovação, identidade cultural com o país alvo e criatividade. Tais valores correspondem aos que a Fiat deseja associados à sua marca, como patente em seu comercial de tom editorial de 2012 para o Panda.
Por fim, resta dizer que apenas o conceito de tradução intersemiótica (Jakobson 1979) permite o perfeito entendimento da maneira como tal tradução conceitual se dá. Fica bem delineado o fato de que, mesmo onde há tradução interlingual nos comerciais, com textos em língua escrita ou falada presentes tanto no original quanto no produto traduzido, tal tradução interlingual, no contexto das traduções intersemióticas, nunca apresenta correspondência direta entre a língua base e a língua alvo, seja por motivos linguísticos, como jogos de palavras ou conotações humorísticas, seja por fatores intersemióticos por si, determinados pela escolha de componentes textuais que possam atingir efeito análogo ao do original, mudando-se a estrutura do meio.
Sabemos não ser esta a única forma possível de se traduzir comerciais televisivos, mas estamos convencidos de que é a mais eficaz.
Bibliografia
D’Angelo, U. 2004. Il ruolo culturale della traduzione. Rivista di studi ungheresi – Nuova Serie, n. 3, 133-139
Hirashima, C. K. 2005. A Importância da Tradução Intersemiótica para os Estudos Tradutológicos. Revista Todas as Letras, v. 7, n. 2, 82-89
Jakobson, R. 1979. Aspectos linguísticos da tradução. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix/EdUSP, 63-72 [Tradução da versão original em inglês (1959) de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes.]
Plaza, J. 2001. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva.
Plaza, J. e Tavares, M. 1998. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec.
Serianni, L. e Castelvecchi, A. 1988. Grammatica italiana: italiano comune e lingua letteraria. Suoni, forme, costrutti. Torino: UTET
Sitografia
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http://www.youtube.com/watch?v=Qu3QlxN5jxQ
http://www.youtube.com/watch?v=nMMPLsw8whg&feature=related
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(Todos os vídeos com último acesso em 25 jan. 2012)
[1] Enciclopédia linguística disponível em versão impressa e virtual. Cf. www.ethnologue.com/show_language.asp?code=por
[2] Cf. www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm
[3] http://www.youtube.com/watch?v=nMMPLsw8whg&feature=related
[4] http://www.youtube.com/watch?v=hgiOJ0H5vDM
[5] http://www.youtube.com/watch?v=Qu3QlxN5jxQ
[6] http://www.youtube.com/watch?v=9iZwVZACogA
[7] http://www.youtube.com/watch?v=SCQ46A8KK-8
[8] http://www.youtube.com/watch?v=9A8hR0rejO0
[9] http://www.youtube.com/watch?v=uubyf40_j9Q
[10] http://www.youtube.com/watch?v=gjOJw9ddh3A
[11] http://www.youtube.com/watch?v=3PHLlMWhlPg
[12] http://www.youtube.com/watch?v=ZlhVMwlQm4E
[13] http://www.youtube.com/watch?v=TK9UAdKNW9M
[14] http://www.youtube.com/watch?v=UzxGYvj-3Bs
[15] http://www.youtube.com/watch?v=tBjRdZXtvS8&feature=player_embedded
[16] http://www.youtube.com/watch?NR=1&feature=endscreen&v=GBHJMgDbsVE
[17] http://www.youtube.com/watch?v=3jpdFsFe9kI
[18] http://www.youtube.com/watch?v=devOI5sFDJk
[19] http://www.youtube.com/watch?v=cljJu6UNPV4
[20] http://www.youtube.com/watch?v=heCVR7kKyRw